Essa carta se classificou em 2° lugar na etapa estadual do 44° Concurso Internacional de Cartas da UPU (União Postal Universal) 2015, promovido nacionalmente pelos Correios.
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17 de março de 2083
Corredor 11, quadra C
Avenida Fotogramática, sem número
Centro – Mimicalópolis – TE
CEP 21200-273
Caro senhor Levi,
Não acho que se sentiria confortável em saber que estou sentada em sua imponente poltrona. Nós dois sempre soubemos que seu escritório era baseado em tons neutros, mas ele parece ainda mais melancólico sem sua presença. Indago-me se o senhor levou as cores para sua nova casa; senão, você é um hipócrita. E, pela desconfiança de minha parte em relação a seu carisma, informo-lhe que estou decepcionada – não me importo se não é o que quer ler, porque estou sem tempo para ser tolerante. A vida corre, e, olhe só – você também! Tu tiveras a coragem de correr de mim, enlouquecer-me ao ver teus parentes afogando-se em lágrimas, pedindo-me, sem eloquência, para vir até... Ao receber este bilhete, terá consciência de que vim aonde querias. Abri o envelope prata escrito para mim e que sei onde tu te localizas: em lugar algum.
Não reconheço tal local. Não traço as curvas dos erres me perguntando como essa carta vai chegar até ti – tu sempre foras responsável por colocar as minhas no correio, e, mesmo não sabendo como isso funciona, sei que tu gostavas de envelopes coloridos, e isso é o que mais importa para mim em todo o Planeta Terra. É teu fetiche por pigmentos.
O senhor me dizia que gostaria de mundo totalmente feito a cores. Faz duas semanas que não o vejo, e tenho pensado muito na questão. Tenho sentado em praças, como você costumava fazer ao estar aqui, e tenho percebido que gosto dos dias nublados. São mais dolorosos que as manhãs repletas de raios ultravioletas, e, apesar de adorá-los, odeio as lembranças que o taciturno me traz. Escrevo-lhe por isso. Porque sinto saudades de você, de contar e ouvir as nossas histórias. Escrevo porque sinto. Sinto muito, sinto demais. Sinto tudo. Sabe disso, não? É possível que também saiba que, por infelicidade de não mais me incluírem na fase da infância, descobri seu novo endereço. Não me prolongarei nos infortúnios, pouparei-o de minha tristura: a carta chegará. Enfim, sinto tanto que contemplei com minha alma vários protagonistas de histórias incrivelmente diversas pela calçada. Alguns corriam e andavam por ela, outros se sentavam e nela dormiam. Examinei meninos fazendo malabarismo por alguns centavos, adultos caminhando com aversão a seus empregos, adolescentes cabisbaixos por seus boletins escolares, idosos entristecidos com bebidas amargas, pessoas famintas com cobertas precárias. E, em um milissegundo, duvidei de você. As cores mudariam suas condições existenciais? Pois vi humanos com distintos corações usando os mesmos trajes coloridos, destratando aqueles que não usassem a mesma marca têxtil que eles. Eu vi crimes sendo perdoados pelo dourado das moedas, cartões de plásticos no comando de assassinatos, o metálico de armas explodindo artérias e sonhos, notas em escarlate desmanchando chances, o preto dos ternos seguindo caixões e, consequentemente, a morte, observei cortinas laranja encobrirem insultos, maquiagens bege mascarando hematomas, pílulas rosa mantendo a sanidade de neurônios, telas azuis de celulares refletindo em olhos cansados; conheci, também, o marrom das garrafas alcoólicas estilhaçado na rua e a copa verde de árvores derrubadas ao chão. Vi tantas, mas tantas vidas se acabarem e se fundamentarem em tantas cores diferentes... E me questionei se você, caro Levi, estava certo. Minha teoria teceu-se: não quero que o mundo seja colorido, nem opaco. Quero que todos possam pintar as próprias paredes, caras e personalidades do modo que quiserem, quantas vezes quiserem. Unidos, eles e nós temos de fazer isso. Você sempre insistiu em dizer que a Terra era cromatizada em tons de preto e branco, mas discordo: ela é vermelha. Do sangue nascemos, sangrando vivemos e no sangue morremos. Quantas guerras externas e internas eu presenciei ao estudar as avenidas? O universo é uma grande tela de pintura, pronta para ser colorida. Tenho que escolher as tinturas que usarei, quais pincéis ficam confortáveis à minha mão; preciso pincelar meus ideais, ilustrar meus pontos de vista. Preciso que acredite em mim, Levi. A ditadura das cores é imensa: há as certas para se usar em cada situação, um padrão para se colorir as paisagens e para demonstrar o que se sente, porém não seguirei tais regras incompetentes. Dê aos habitantes das calçadas ferramentas artísticas para que possam mudar suas situações, pigmentar suas nuvens; oferte aos adultos e adolescentes cansados umas tintas; presenteie o Sistema Solar com uma obra de arte feita por ti, brilhante como estrelas, como seus olhos orgulhosos. Ofereça circunstâncias, oportunidades, respeito e compreensão a seus museus pessoais. É provável que, nisso, o sol apareça tão grandioso que complete nossos afrescos. A chuva se convidará para a festa artística e conceberá um arco-íris magnífico. Você, Levi, sempre foi um homem alegre, tomado por cores primárias e secundárias, e eu as uso misturadas hoje, em sua homenagem. Não me atrelo ao preto: seu último rastro de existência merece compaixão. Imagino sua lápide – elas costumam ser cinzas; espero que tenham personalizado a sua com guache. Senão, eu o farei.
Respeitosamente,
Laila
Rua Circense, 373
Noroeste – Mimicalópolis – TE
CEP 14436-196
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O Vestido Verde e outros contos
Short StoryEntre flores, vestidos verdes, anotações, florestas, meias, trompetes, cartas, carros, quebra-cabeças, cumprimentos e mais outras coisas, começamos, com um pé de cada vez, a entender o processo biológico maravilhoso que é a vida. Capa magnífica fe...