Meu nome é Lúcio Manfredi e eu sou o autor deste conto. Naturalmente, essa é uma generalização, de fato uma simplificação da verdade. Pra começo de conversa, meu nome não é Lúcio Manfredi. Essa é uma forma reduzida do meu nome completo, que eu uso por razões de eufonia e facilidade. Quem reduziu meu nome de Lúcio Jorge Pina Manfredi para Lúcio Manfredi foi meu professor de português na quinta série, que publicou meu primeiro conto no jornalzinho da escola e viu-se confrontado com o seguinte dilema: meu nome completo era comprido demais para caber no reduzido espaço da coluna do jornal que, ainda por cima, era mimeografado. Assim, meu professor não teve dúvidas. Pegou uma tesoura e cortou meu nome ao meio. Gostei do resultado e, desde então, tenho sido Lúcio Manfredi em tudo que escrevo, até mesmo na minha assinatura. Mas o fato é que não é esse o nome que consta na minha carteira de identidade.
Além do mais, é discutível que isto seja um conto. Quero dizer, existem algumas regras básicas que um texto precisa respeitar para ser considerado um conto. Vou me esforçar sinceramente pra respeitar essas regras, uma vez que eu gostaria muito que este texto fosse lido como um conto. No entanto, pra quem se propõe a seguir as regras mínimas estipuladas pela crítica literária pra definir um conto como conto, bom, eu já comecei com o pé esquerdo, porque gastei quase dois parágrafos inteiros tergiversando sobre assuntos que, nominalmente, não têm a menor relação com o tema do conto. Na verdade, três porque pretendo gastar o parágrafo seguinte refletindo um pouco sobre as tais características que fazem com que um conto seja um conto e não ficaria muito chateado se pudesse contar com a indulgência do leitor. O trocadilho foi, ahn, involuntário.
A maioria das pessoas acha que um conto é qualquer história curta. E não só as pessoas que não têm o menor conhecimento de crítica literária. Mesmo editores tendem a pensar no conto dessa forma naïve. Se tem até tantas palavras é um conto, de tantas a tantas é uma noveleta, com mais algumas centenas de palavras vira uma novela e daí pra frente é um romance, que só uma toupeira completa seria capaz de confundir com um conto.
(Neste exato momento, aliás, estou trabalhando no roteiro de um programa infantil onde um dos personagens é uma toupeira. Com bastante imaginação e criatividade, a gente chama esse personagem de Toupeira. De um modo igualmente surpreendente, esse personagem também é uma toupeira no sentido figurado. Ele irrompe o tempo todo no cenário nas horas mais impróprias e sempre pergunta se ali é Pindamonhangaba. Dá vontade de responder que não, que ali é um estúdio de tevê, mas os produtores do programa não iam gostar desse exercício de metalinguagem. A televisão, pelo menos no Brasil, pelo menos na emissora pra qual eu trabalho, tende a ser meio alérgica a metalinguagem e eu às vezes me pergunto porquê.)
Tá, enganei o leitor. Não são três parágrafos sobre a natureza do conto. São quatro. A única coisa que eu posso alegar em minha defesa é que eu pretendia honestamente encerrar o assunto com três parágrafos e teria conseguido, se não fosse interrompido pelo Toupeira, que irrompeu na hora mais imprópria perguntando se aqui é Pindamonhangaba. Não, aqui não é Pindamonhangaba e minhas desculpas consumiram um outro parágrafo inteiro, droga.
Vamos tentar de novo. Esqueçamos toupeiras e romances, vamos direto ao ponto. Um bom conto tem que obedecer a algumas unidades, que a crítica pegou emprestado da Poética de Aristóteles. O mais engraçado é que, se você conhece a Poética, sabe que, apesar do nome ambíguo, que tinha um outro sentido na Grécia, ela (a Poética, não a Grécia) não trata nem de poesia nem de literatura, mas de teatro. Então, quando um roteirista pega as unidades aristotélicas como parâmetro, ele até pode estar fazendo uma extrapolação legítima, já que dramaturgia é dramaturgia, seja no palco, na tela de cinema ou num monitor de tevê, que eu mal resisto à tentação de chamar de écrã, como os portugueses, porque acho écrã uma palavra muito mais bonita do que monitor. Agora, se você não se perdeu na oração anterior e ainda se lembra do que estávamos falando, e eu confesso que já quase esqueci, porque enquanto estava escrevendo minha irmã entrou no quarto e me distraiu falando de outra coisa completamente diferente, tive que reler o parágrafo pra manter o fio da meada e com isso perdi foi o fio da frase, que ficou truncada, melhor botar um ponto e abrir outro parágrafo.
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Um Conto Sobre Televisão
Short StoryNo final da década de 1990, um grupo de autores, todos recém-saídos das oficinas de dramaturgia que a TV Globo realizava periodicamente na época, ficaram amigos e resolveram se juntar para escrever uma antologia de contos sobre televisão. O livro fo...