a d e u s , q u i m e r a

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Pausa para o almoço no edifício onde certo rapaz trabalha. Ao invés de descer, como todos os seus colegas de trabalho, esperou alguns minutos e dirigiu-se para o terraço. Segunda-feira nublada, tal qual seu humor. Observava o vai e vem de carros daquela avenida movimentada, pessoas apressadas, engravatadas, assim como ele, que vida sufocante, pensava.

Jogou o paletó num canto qualquer, afrouxou a gravata, hipnotizado pela vista do local. Sentou-se no parapeito do edifício, tirando uma folga de sua vida monótona e repetitiva como suas tarefas no escritório. Imaginava qual seria a história de cada pessoa que via passar, romances sem futuro, casamentos felizes aos trancos e barrancos, dois ou três filhos, talvez quatro gatos, um trabalho entediante, inúmeras contas para pagar, festas de família com mais fofocas do que essas revistas de R$ 2,99 que vendem por aí...

Liberdade era o que mais desejava naquele instante. Atreveu-se a caminhar pelo parapeito, afinal queria dar um pouco mais de adrenalina para sua rotina sem graça. Por que teria medo? Loucos são os pobres mortais que se contentam com uma vida mediana, se fosse para viver assim, preferiria a morte.

Abriu os braços, aproveitando a brisa para se refrescar, desejando que a mesma levasse seus problemas para longe, ainda que nem um vendaval fosse capaz disso.

E se caísse, naquele exato momento, atrapalharia muito a passagem dos pedestres ou seria ignorado, como de costume? Pensou melhor, ignorado certamente não seria, um cadáver no meio da calçada mudaria o trajeto de muitos, provavelmente passariam por ele pensando se não tinha um lugar melhor para morrer. Começar a semana se atrasando no emprego por causa de um infeliz que resolveu dar cabo da vida no meio do expediente não deve ser muito agradável. Quer saber, todos que se danem. Fechou os olhos. Respirou fundo. Pulou.

Durante sua queda, não assistiu aos melhores momentos de sua vida, como sempre imaginou que iria acontecer. Viveu, ou pior, existiu em uma vida tão frustrante que nem valeria a pena. Sentiu que estava voando durante os poucos segundos de queda até chocar-se contra o chão, libertando sua alma. Nem doeu, pensou satisfeito.

Observava a multidão que se formava ao redor de seu corpo, esbravejando sua indignação. Ora, não há nada de mais! Até parece que se importam com o defunto estirado no asfalto. Nem em vida recebera tamanha compaixão. Incapazes de testemunhar o deboche da mais recente alma penada, os transeuntes apenas lançavam olhares curiosos sobre a triste cena. Logo se recompunham e retornavam às suas rotinas.

Uma moça ria sozinha, reação fora de contexto, até que ela o encarou com um sorriso aberto. A moça com quem sonhava quando estava vivo -- ou pelo menos algum ser sobrenatural tomando as formas dela. Se os anjos buscavam as novas almas de um modo tão especial, questionava o porquê de não ter morrido antes. Ela se aproximou dele, segurou sua mão e o levou para um lugar distante, onde só se ouvia o mais sublime canto dos pássaros.

Encantado por estar frente a frente com aquele ser de outro mundo, tentou dizer algo, mas a bela criatura pôs o dedo indicador em seus lábios para que ele se calasse. Ela tinha algo mais importante para dizer. Enfim, mais calmo, ele poderia prestar atenção.

Com uma delicadeza ainda não presenciada pelos mortais, ela pôs as mãos em seu rosto, aproximou-se do seu ouvido, e sussurrou: acorde, moço, acorde. O rapaz não compreendia seus comandos. Mostrando sinais de impaciência, a jovem deu-lhe um tapa que doeu de verdade. A criatura então desapareceu e tudo ficou escuro. Acordou.

Uma pena. O canto dos pássaros fora substituído pelo arrulhar dos pombos; a bela criatura fora substituída pelo zelador, que pedia insistentemente para o garoto despertar. Não era a primeira vez que o via cochilando no parapeito do prédio, sabia que o rapaz ainda estaria lá.

"Como foi o sonho dessa vez?", perguntou.

"O mesmo de sempre, meu caro", respondeu desanimado.

O rapaz ajeitou a gravata, pegou o paletó, olhou as horas, já deveria ter voltado ao trabalho. Encerrado o expediente, foi para casa, sonhar uma vez mais com o ser angelical que mora no apartamento ao lado.

Adeus, QuimeraOnde histórias criam vida. Descubra agora