PRÓLOGO
Já vou lhe avisando: esta não é uma história de amor. Pelo menos não como a maioria delas. Haverá paixão, calor, fogo; juras de amor e lágrimas derramadas por corações machucados.
Mas também haverá morte.
As luzes iluminam a selva de pedra. Pequenos pontos luminosos como o reflexo de milhares de diamantes diante dos meus olhos. Mas não foco em nada desse espetáculo que a noite me reserva.
Estou coberta de suor. Minhas roupas estão completamente encharcadas, grudando em meu corpo, impedindo-me de fugir. Quero correr mais rápido, acelerar meus passos, mas as lágrimas insistem em escapar de meus olhos, turvando-me a visão.
O fogo aparece e me sufoca. Quero fugir, mas parece que todo aquele calor me envolve, brilhando e ardendo sobre mim, como raios divinos caindo do céu. Cada passo parece impossível. Meu corpo dói pelo simples esforço de respirar.
Uma luz ofusca meus olhos, que parecem derreter. Gemo de esforço, dor e medo. Sem rumo, tropeço e caio, mas o chão parece fugir sob os meus pés.
Mergulho em um denso lago, rubro e revolto como sangue. Tento não afundar, mas é em vão. O ar me falta e a consciência vai sumindo, lentamente. Sei que não tenho mais chances de sair dali.
Numa última tentativa de sobreviver, chego à superfície. Mas sei que não sairei viva, pois vejo os olhos deles. Sei que estão lá e que não me perdoarão jamais.
As risadas cheias de amargura e dor quebram o silêncio e o céu, que pensei ter visto antes coberto de estrelas, se torna prateado. Refletindo como aço. Como uma lâmina. Como uma arma.
Algo me puxa, pela última vez. E o vermelho que cobria meus olhos se torna a mais densa escuridão.
Acordei repentinamente, tapando a boca para abafar o meu grito. Por mais que eu não deixe as lembranças tomarem conta de mim, de vez em quando elas aparecem em meus sonhos. Melhor dizendo, pesadelos.
Antes ocupavam a minha cabeça durante muito tempo, mas agora não apavoram mais. O calor das manhãs faz tudo desvanecer e parecer bem melhor do que é.
Para que acordar trêmula todas as noites? Sempre irei acordar mesmo...
Já aprendi a conviver com os meus fantasmas. Todos nós não o temos?
Pesadelos são efêmeros. Já vivi dores bem piores em minha vida. Testemunhei na pele terrores muito piores que não destruíram apenas meu corpo, mas também meu coração.
No entanto, não vou me lamentar mais. São apenas memórias. Apenas tristes lembranças que a névoa do tempo esqueceu-se de cobrir. Por mais que sejam teimosas, querendo reviver, não vão voltar.
Saio vagarosamente da cama, para não acordar Rafael, que dormia ao meu lado. Levanto e observo seu corpo ressonar levemente. Seus braços se estendem onde eu estava deitada, me oferecendo proteção e abrigo todas as noites.
Abro as portas que me conduzem à sacada. Sento-me na cadeira e sinto o meu cabelo acariciar o rosto.
Uma pétala se desprende das flores e passeia pelo vento, dançando diante dos meus olhos. A pétala amarelada é como as minhas memórias. Fragmentos arrancados e levados pelo tempo e que, quando menos esperados, aparecem como um vislumbre na nossa face.
É apenas uma coisa distante. Um pensamento longínquo...
Não sou mais aquela boa menina, ou boba, de anos atrás. A sorte é minha companheira. O período de lágrimas e solidão não existe mais. Quantas voltas esta simples vida já deu! Às vezes, me pego pensando que esta história daria um livro.
Nisso reside a doce ironia de contá-la a vocês. Vou conseguir relembrar tudo? Cada detalhe ou palavra? Não sei dizer ao certo.
Conforme o tempo passa, a fantasia toma conta de nossas recordações e tudo ganha um novo aspecto. Passamos a ser verdadeiros heróis contra monstros imaginários. Mas garanto que os meus foram reais.
O tempo parece que se encarregou de melhorar muita coisa, fez a razão crescer, calejou a alma. Mas, se precisasse resumir em poucas palavras, como em uma propaganda de televisão, foi “uma montanha russa de emoções intensas, com reviravoltas inesperadas nas voltas desse caminho”. Que melodramática eu pareci agora.
Motivos a vida sempre se encarrega de nos dar.
Vou fechar os olhos e contar tudo a vocês. Chega de esconder.
Fui extremamente fria. Como uma deusa da vingança, cruel e vingativa, passei por cima de todos que atravessaram o meu caminho, para conseguir castigar aqueles que me haviam feito sofrer. Cada doce carícia que dei a quem não merecia foi retribuída com sedutores toques manchados de sangue. Por isso, sem qualquer remorso, pense que estou ao seu lado, minha única testemunha, e direi, ao pé do seu ouvido: eu matei.
Não tive escolhas. Tive dor e ódio. Um sentimento tão pesado que ameaçava destruir meu peito e levar embora a minha sanidade. Precisei matar para voltar a viver.
Não esperem arrependimentos ou ataques de consciência pesada, onde eu vejo minhas mãos sujas de sangue.
Tomo meu ar. Sei que vou começar a falar e irei até o fim. Observo as luzes desordenadas em seu movimento incessante, noturno, de cidade grande.
Minha primeira lembrança, sem dúvida, será do momento final. Revejo aquela menina-mulher, de anos atrás, naquele ônibus estranho, mas tão familiar, saindo da cidade que mudou a sua vida em uma tarde escaldante de verão. Parece-se com uma menina, mas se tirar os óculos verá a sabedoria e a dor de uma anciã, marcada pela vida.
A cidade se torna uma forma cada vez mais diminuta, e ela, em nenhum momento, olha para trás. Murmura algo e sorri, como há muito não sorria.
Uma risada começa a se ouvir, e, em descontrole, ela gargalha como louca. Um recorte de jornal está em suas mãos, um pedaço de papel amassado que comprova tudo que passou.
Entro no quarto novamente. Atravesso o closet e abro uma caixa singela, que Rafael nunca havia percebido ali. Pego nas mãos o mesmo velho recorte de jornal. Comigo ele continua, amarelado, mas intacto. Guardei comigo essa única prova do que havia se passado.
Não precisa me seguir, você pode fazer barulho demais. Já voltei à sacada onde o vento passeia, cada vez mais inquieto. Releio a notícia pela última vez. Não preciso mais desse papel, pois não haverá mais receios e medo. Quero afugentá-los de vez.
Você será minha testemunha invisível, com seus olhos que acompanham minha vida descrita em palavras. Ou quem sabe o vento se encarregará de levar estas palavras para alguém que saiba melhor avaliar esta trajetória.
Pico o recorte e o jogo pelo ar. Toda aquela dor que pensei ainda existir em mim, se esvai com o último vestígio funesto de um plano tão bem arquitetado.
Um último pedaço com as palavras “crime e morte” passa diante de mim. Se tivesse sido só isso, tudo seria mais simples...
Aqui, diante de você, contarei, enfim, em detalhes a minha história. Se em algum momento eu parecer cruel, insensível ou uma grande cachorra, peço que me desculpem, mas fui mesmo. Não estou aqui para ser julgada pelos meus atos. Diante do que fizeram comigo, eu fiz o que achava justo. E se errei, espero que Deus me perdoe...
Para conhecer a obra completa, visite o site do autor: www.danilobarbosaautor.com.br