CAPÍTULO 1 - Família Ê, Família Ah

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  Penso que é melhor começar do começo não é? Mas bem, bem lá do comecinho... Lá na primeira vez que eu soube que ia ter um irmão, escutando atrás da porta o choro da minha mãe e a voz eternamente macia e acolhedora do meu pai.

—Eu não acredito Rubens! Logo agora que eu fui chamada para integrar o corpo docente do melhor curso vestibular do Rio! Não podia acontecer isso! Nunca que eu vou ter uma chance como essa novamente!

—Que isso, meu amor? Claro que vai! Quem vê você falando desse jeito pode achar que você tem uma doença terminal e não que carrega uma notícia tão boa nesse papel. Um bebê, Rutinha! Tem coisa melhor do isso? Um moleque para ir comigo no Maraca ou outra princesinha como a Adriana, linda como você, meu bem!

—Eu já tenho um bebê Rubens, já grande, mas é o que me basta! A Adriana já me dá alegria e trabalho que chega, eu não vou saber lidar com mais uma criança, dar aulas e ainda te ajudar na loja!

—Querida, diminui seu tempo na loja, eu te ajudo mais em casa, tudo vai se ajustar. Tantos casais têm muito mais do que dois filhos e dão conta, por que você que sempre foi tão forte e eficiente não vai dar? Nós vamos, não se preocupe.

—Eu sou uma pessoa horrível, não sou?

A minha mãe chorava e soluçava e eu já estava preocupada com ela. Pela voz do meu pai eu podia sentir que ele também, e isso deixava-me mais apavorada ainda.

—Não chora, não fala assim, sabe que o bebê já sente e nós não queremos que ele se sinta rejeitado não é mesmo? Você não é horrível, você é linda, minha loira! Eu te amo muito! A você, a Adriana e a essa sementinha aqui, que veio para deixar nossa família mais linda Rutinha.

Eu empurrei a porta do quarto dos meus pais, devagarinho, e vi meu pai, na frente da minha mãe, que estava sentada na ponta da cama, de joelhos, beijando amorosamente a barriga dela e depois se levantando e beijando o rosto da minha mãe, apagando a trilha de lágrimas que escorriam pela sua face com beijos suaves.

Eles eram tão diferentes e tão lindos juntos!

Ele alto, forte, moreno, sempre de barba, o que deixava ele mais com cara de pai ainda e me dava uma cosquinha engraçada quando ele me beijava.

Ela loira, pequena e delicada como uma flor, com os seus lindos olhos azuis, que eu modestamente puxei, sempre brilhantes como duas estrelas.

Ele de temperamento doce e justo, nunca elevando o tom de voz para zangar comigo, sempre me explicando tudo duzentas vezes se necessário, emotivo ao extremo, alegre e festivo, dispensava toda a atenção do mundo para mim e para minha mãe.

Ela geniosa como o inferno! Muito inteligente, organizada, e racional, e séria, tão séria que beirava o melancólico, nunca desperdiçava seus sorrisos, era quem colocava ordem na nossa casa, sempre gritando ordens e reclamações, apesar de não ser nada rígida comigo, muito pelo contrário, até parecia se divertir com minhas aprontações.

Aliás, verdade seja dita, se uma coisa os dois tinham em comum era o fato de não conseguirem ficar bravos comigo nem por um instante, e com tudo isso eu tinha a certeza de que era a criança mais amada do mundo. Vendo os dois ali, tão apaixonados, eu também sentia que era a filha dos pais que mais se amavam no mundo também.

Aquela cena nunca sairia da minha cabeça, o príncipe ajoelhado diante de sua princesa cuidando dela com todo o amor do mundo. Um dia eu também teria o meu príncipe e ele seria tão forte, lindo e amoroso quanto era o meu pai!

Depois desse dia minha mãe parecia mais conformada. Assim enquanto a barriga dela ficava cada vez maior, meu pai e eu ficávamos cada vez mais eufóricos.

Ele fazia questão que eu participasse de tudo, me designando como a guardiã do bebê, o que me encheu de senso de responsabilidade a primeira vez na minha vida. Talvez por isso, ao invés de ciúme eu já sentia um amor imenso e cuidava do enxoval do bebê como se fosse uma coleção de roupas da Barbie, obrigando meu pai a comprar tudo o que eu via pela frente, o que deixava minha mãe louca.


—Outra roupa Rubens? Nem sabe o sexo do bebê, vai encher a casa de roupa amarela e verde. Espera pelo menos saber o que vai ser.

Ah! Eu adorava ficar pensando no que o bebê seria, em como ele seria! Eu estava torcendo por uma menininha para brincar comigo e ela seria tão minha amiga quanto a minha inseparável Lívia. Minha mãe torcia o nariz quando eu dizia isso, falando que queria ver, que depois que o bebê não fosse mais novidade eu nem ligaria para ele. Eu a amava, mas às vezes ela era tão burra! Só ela que não via: meu irmão e eu seríamos os maiores amigos do mundo!

Por isso, quando eu soube que era uma menina quase fiquei doida! Eu os acompanhei ao ultrassom apesar de ter sido obrigada a aguardar na recepção pelo que pareceu um ano inteiro até que eles voltassem e meu pai se abaixasse na minha frente e me desse a notícia, todo animado.

—Adriana, você acertou! Nós vamos ganhar uma menininha! Outra princesinha linda para o papai, eu estou tão feliz, e você, meu doce?

Eu pulei no pescoço do meu pai quase fazendo ele cair no chão.

– Oba! Papai, eu vou brincar tanto com minha irmãzinha! Eu posso escolher o nome dela?

Minha mãe não parecia tão animada quanto ele.

— Não entendo toda essa alegria, Rubens. Não era você quem queria um menino para levar ao futebol?

Me pai se levantou e segurando minha mãe pela cintura a aproximou dele e a beijou na testa, enquanto a outra mão deslizava sobre a pequena montanha que era a sua barriga.

— É claro que eu estou feliz Rutinha, meu bebê está cheio de saúde, por que eu não estaria? Menino, menina, pouco importa, só importa que vai ser muito amado. Além do mais a Adriana sempre viu jogo comigo e isso não faz dela menos menina, pensando bem acho que estar rodeado de lindas mulheres não é tão ruim assim, não é mesmo?

Soltou a minha mãe e piscou para mim.

— Então mocinha como você quer chamar a nossa bonequinha?

– Ah! eu acho o nome da minha professora tão lindo! Ela se chama Ana Paula, mas eu não quero que a nenê tenha mais nome do que eu, então ela poderia ser Paula? Você gosta desse nome mamãe?

Era a primeira vez que ela sorria desde que ela saiu da sala do exame.

— Muito lindo, meu amor, se você quer que ela se chame Paula, Paula vai ser.

Se meu pai achava que saber o sexo do bebê faria minha mãe mais participativa dos preparativos para a chegada da Paulinha, ele estava muito enganado. Comigo ela era a mãe carinhosa e cuidadosa de sempre, mas tudo que ela fazia para o bebê era no automático, e mais do que isso, implicava com tudo o que meu pai fazia para ela, achava tudo exagerado e desnecessário. Até o quartinho lilás que eu ajudei meu pai a decorar, toda feliz por que ele tinha pintado da cor que eu escolhi, comprado cada coisinha que eu pedi fazendo com que parecesse realmente um quarto de princesa.

Quando ficou pronto meu pai parecia que ia estourar de orgulho de mim, dizendo que eu levava jeito para decoração e devia ser arquiteta, minha mãe também elogiou muito, bem como ela gostava. Enunciou cada acerto como se fosse uma prova e ela estivesse aferindo minha nota, mas mesmo assim eu fiquei muito envaidecida com a aprovação deles, mas logo depois de elogiar, minha mãe soltou uma longa explicação sobre o quanto apesar de estar orgulhosa de mim e do papai ela achava desnecessário um gasto tão alto para em um quarto principalmente depois dela ter perdido a chance de melhorar o salário dela.

Olha, meu pai adorava o chão que minha mãe pisava, sempre dizia que não acreditava que ela, linda e inteligente como era, tinha olhado para ele, e sempre tinha algo doce para dizer a ela, perdoando sua ranzinzice e até achando graça do jeito dela, mas naquele dia eu vi meu pai perdendo a linha com a minha mãe. Ele me pediu que fosse para a casa da Lívia e quando voltei minha mãe estava com cara de choro, deitada no sofá e o papai não estava em casa, só voltando bem tarde, o que eu nunca tinha visto ele fazer.

Durante dias o clima lá em casa pesou, meu pai falando entre os dentes com minha mãe e ela chorosa pelos cantos. Depois, ele viu que não valia a pena e voltou a agradá-la como sempre e ela, por sua vez, ficou mais receptiva às coisas que nós fazíamos pela bebê.

Infelizmente, porém, logo que a Paulinha nasceu a indiferença da minha mãe se transformou em uma depressão brutal que parecia roubar toda a vontade de viver.

Passava horas lá deitada, sem ânimo para nada, mal cuidava da nenê e nem mesmo quis amamentá-la por muito tempo. Meu pai se virava em dois para dar conta de cuidar da Paulinha como podia e da loja, nunca reclamando de nada. Bem verdade que a tarefa mais difícil era a loja mesmo, a Paulinha era o bebê mais bonzinho do mundo, quase não chorava, passava seus dias olhando minha mãe com aqueles olhões escuros que pareciam perguntar quando ela seria vista, quando minha mãe daria algum tempo para ela.

Confesso que cheguei a ficar brava com minha mãe pelo jeito que ela tratava minha irmãzinha, mesmo que meu pai, sempre ele, tivesse me explicado que minha mãe estava doente e precisava de carinho e amor. Poxa a nenê também precisava!

Assim que nosso laço se estreitou, eu passava horas só brincando com minha irmãzinha enquanto meu pai estava trabalhando, e mesmo quando minha mãe conseguiu sair do seu torpor e começou a reagir, cuidando melhor de si mesma e até da Paulinha eu ainda ficava por perto, ajudando sempre.

Por isso foi natural que a primeira palavra dela fosse "nana", tentativa super complicada e engraçadinha de falar "Adriana" e que a partir desse dia foi a forma como eu fui chamada por todos, e que tão logo ela começasse a andar ela grudasse em mim e na Lívia. Na verdade, ela e minha mãe nunca conseguiram reatar o vínculo perdido, e por mais que a Paulinha quando menor tivesse gasto muita energia tentando ser quem ela achava que minha mãe gostaria, sendo responsável, independente, caprichosa, a mamãe na maior parte do tempo a ignorava simplesmente, só abrindo exceção para as coisas relacionadas à escola que ela cobrava excelência da Paulinha mais do que tinha cobrado alguma vez de mim. Meu pai dizia que nessas horas era o sangue alemão que falava mais alto e minha mãe se transformava em um oficial nazista, e eu pensava comigo mesma que com a Paulinha ela era sempre assim.

Com o tempo a Paulinha se adiantava a ela, tendo o caderno mais limpo e organizado de toda a escola, o uniforme mais limpo, a atividade mais completa e as notas mais altas, era sempre menção honrosa onde estudou e onde quer que fosse era elogiada e admirada, principalmente por mim e pelo meu pai. Minha mãe, no entanto, não parecia entender que ela fazia aquilo procurando sua aprovação e com o tempo ela simplesmente se isolou da minha mãe, continuando a ser a menina maravilhosa que era, mas saindo do caminho da minha mãe tanto quanto podia.

Acredito que foi por isso que eu era tão terrível! Eu queria mostrar para minha mãe o quanto a Paulinha era boa, mas quanto mais eu aprontava mais minha mãe achava graça, chegava até a elogiar a minha "personalidade".

Que personalidade que nada! Eu era uma peste mesmo!

Junto com a Lívia eu deixava a vizinhança de cabelo em pé, andávamos de "skate" com os meninos, subíamos em árvore, empinávamos pipa! Eu vivia machucada e quebrada, não perdia uma oportunidade de testar os meus limites. Talvez por isso que meu pai não sentia falta de ter um menino, em matéria de molecagem eu deixava qualquer garoto no chinelo. Mesmo assim para a minha mãe, tudo que eu fazia era perfeito, uma vez ela me disse que o meu espírito era livre, que eu tinha nascido para brilhar.

Ela própria não tinha nada disso, era rígida e presa as suas próprias convicções.

Já a Paulinha me seguia como uma sombra, mas sempre a uma distância salutar para ela, nunca se sujava, ou fazia algo perigoso, ou mesmo tinha muitos amigos. Seu Universo se restringia a mim, a Lívia e a Malu, sua melhor amiga, quando muito ela conversava com o Davi, irmão da Malu, e mesmo assim porque ele sempre estava por perto.

O que fazia a alegria da minha bonequinha era um lugar calmo onde ela poderia sentar e ler um livro, sem que ninguém a incomodasse. A coitadinha se esforçava tanto para ser transparente para minha mãe que se comportava como se ela realmente o fosse.

Mas não era!

Ela era linda e tão doce que mesmo sem fazer nenhum esforço encantava a todos onde quer que nós fossemos. Meu pai estourava de orgulho o que só piorava a situação dela com a mamãe, isso sem falar que, se ela fosse difícil de lidar, seria mais fácil de encontrar motivo para implicar com ela, mas isso minha mãe simplesmente não tinha.

Com o passar dos anos nossas diferenças se acentuavam tanto quanto o nosso amor crescia. 


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