CAPIVARA DE OITO PATAS
Nos anos sessenta, Trindade era uma cidadezinha distante de Goiânia, cujas estradas demandando para lá eram todas de terra. A região se desenvolvia aos poucos, com muita mata virgem limitando a cidade trazendo sons da bicharada selvagem. As nascentes do Rio dos Bois começavam nuns alagados do município, em lugares cheios de lagoas grandes e pequenas, parecendo um pantanal, A maior delas era a Lagoa dos Padres, ligada por um braço à Lagoa dos Patos. Tudo cercado de matas e mais matas, todas virgens das botas do homem. Havia um progresso danado trazido com a linha de trem, indo até a cidade de Campinas, transformada em bairro de Goiânia, batizada capital.
Vinha muita gente de Trindade e redondezas para ver o trem chegar ou partir da estação de Campinas, distante do povoado religioso, pouco mais de vinte quilômetros. O resfolegar do motor a vapor da composição assustava a caboclada nas primeiras vezes, mas depois ficavam mansos que até se queimavam na curiosidade em pegar o vapor expelido na descarga dos pistões. O ferroviário Onofre Conceição era o maquinista-chefe, tinha um bom emprego e gostava de caçar capivaras nos dias de folga, bicho muito comum na região rural de Trindade. Existiam ainda: anta, jacaré, sucuri veados, catetos, onças, tatus, em fim era uma região preservada da sanha comercial de madeiras e de capim.
Chegavam os finais de semana os quatro cachorros de caça de Onofre ficavam impacientes quando viam o patrão se arrumando para caçar. Uivavam e corriam para todos os lados da chácara onde moravam, ali para os lados do Setor Ferroviário, nas margens do córrego Botafogo. Ele preparava a tralha composta de capangas de pólvora, chumbo, bucha, espoleta, etc. Pegava a buzina e chamava os cães. Montava o cavalo zanho, fazia o forrobodó de costume zunindo a buzina e saía. Entrava na estrada de boiadeiros e desaparecia na mata fechada da fazenda do coronel Agripino. Nunca voltava de mãos vazias. Tinha vez de não conseguir carregar todos os bichos abatidos. Nas duas últimas caçadas teve uma decepção tremenda.
Seus cachorros seguiram a batida duma capivara muito grande. Pelo rastro deixado na terra macia devia ser a maior já imaginada. Olhou a pegada mais de uma vez, duvidando do tamanho, mas em fim confirmou-lhe autenticidade com um dos parceiros: era mesmo capivara. Não fosse sua prática com rastros de tudo quanto é bicho, teria corrido das pegadas ás margens da Lagoa dos Padres, imaginando-as duma onça ou dinossauro. Os cachorros foram na batida, como se estivessem nos calcanhares da caça, mas perderam contato e ficaram para trás até perder o rumo. Não tinha lembranças dalgum bicho que houvesse escapado de sua matilha. Devia ser um animal muito veloz e velhaco.
A notícia da capivara gigante, mais veloz que cachorros de caça se espalhou atraindo aventureiros de todos os calibres. Ajuntou caçador afamado, até da colônia dos ingleses em Rio Verde. Parecia mutirão para caçar onça e, na semana combinada, cada um compareceu com sua cachorrada de faro afiado, alguns com cinco, seis e até dez cães ensinados. Quando tocavam suas trompas de caça acontecia uma farra canina dos diabos, com mais de cinqüenta cachorros latindo, grunhindo assanhados para entrar no mato, no brejo, no campo, no cerrado em todo lugar e acuar qualquer bicho.
Onofre levou os parceiros de caçada para a beira do córrego Caveirinha e mostrou-lhes um rastro recente da tal capivara. Todos se admiraram com o tamanho da pata e o peso que fazia afundar o barro duro. Os cães foram insulados a farejar a pegada recente. Em seguida foram soltos em manadas por caçador. Saíam na toda enfurnando na capoeira-de-machado procurando a capivara gigante. A corrida rumou para os lados do morro Velho em direção da nascente principal do Rio dos Bois, entrando nos gerais do coronel Apolinário. Outros bichos encontrados pelo caminho escafediam na prevenção, mas os cachorros e seus donos não lhes davam bola, não interessava a ninguém, estavam ligados, igual imã em ferro na tal capivara, acaso se envolvessem com outros bichos seria motivo de desmoralização.
Em menos de quarenta minutos levantaram a batida da capivara procurada. A corrida seguiu na direção da mata grande, passando num descampado onde a dois anos foi uma roça de milho. Na capoeira-furada, de menor embaraço para vadiar os cães perderam o contato, não conseguindo amiudar a distância na perseguição e ficaram para trás, cansados em língua de metro. Desistiram da capivara, no final do dia, por volta de dezoito horas. Apenas os cães mais avançados viram a capivara de longe e foi só. Aquilo parecia impossível ter acontecido. O bicho corria mais que cinqüenta cachorros caçadores, sendo alguns de raça afamada. Um absurdo. Os aventureiros tiveram de voltar para casa sem nada, nenhum se interessou por outro bicho sendo escorraçados nas margens da trilha de volta pelos cães enfurecidos. Aquele dia foi da caça e não do caçador, porque nem puderam ver a cor da caça. Três semanas depois, um peão do coronel Apolinário chegou à venda do português Manoel Gago, no morro do Mendanha e soltou o verbo.
Estava campeando um boi arribado perto do roçado do Nhô Bento quando esbarrou com um bicho esquisito, talvez fosse a capivara procurada, cujo rastro era o mesmo de antes, achou muito parecido, mas lhe pareceu ser maior que as pegadas duma anta, mas não podia ser. Mesmo assim resolveu campeá-la com o cavalo e deu rédeas à toda brida. Quando o bicho bizarro começou a correr ele notou-lhe algumas coisas estranhas nas costas, como se fossem patas. A corrida era apertada demais. Saíram num lugar mais aberto e quando estava pega não pega, aprontou o laço para uma jogada certeira, o bicho deu um salto. Virando as quatro patas descansadas das costas para o chão e continuou correndo com maior vigor ainda, estavam descansadas. Aquilo era diferente para dedéu, se parecia com assombração, mas faltava a inhaca de avejão. Matutou no desgosto de perder e confirmou os causos ouvidos e duvidados por ele sobre a capivara de oito patas, correndo com um conjunto delas por vez, quando cansava, virava para aproveitar as pernas descansadas. Com esta manobra a capivara virou uma binga e sumiu num capão de macega rala. Nem cavalo de raia conseguiria pegar. Embrenhou-se no ermo e num piscar de olhos só viu o mato se mexendo cada vez mais longe. A batida das patas no solo tremia os ares.
A notícia vazou mundo, chegando a tudo quanto era caçador das redondezas. Virou manchete no programa Nossa Fazenda da radio Brasil Central. Onofre era o centro das perguntas, pois foi ele quem primeiro descobriu aquela coisa. Carecia capturar viva e trazer para o zoológico da capital, onde seria mostrado para o povo descrente da história e para a revista "O Cruzeiro", maior veículo de comunicação da época. Onofre se viu obrigado a marcar um congresso de caçadores para reunir os interessados na caçada da capivara de oito patas e discutir estratégias de ação na capturá-la viva. Dia 12 de outubro de 1.962, sábado, começou a chegar gente para o fórum inusitado, caçadores, pescadores, curiosos e muitos outros mentirosos de menor quilate ouriçando a chácara de Onofre. Houve necessidade de fazer arroz de festa, nos tachos de mutirão.
A discussão sobre táticas e estratagemas para vencer a capivara rolava solto em todas as rodas, eram unânimes na necessidade de capturar o bicho vivo para mostrar a novidade ao mundo. Quem o fizesse seria lembrado por diversas gerações. A empreitada foi marcada para o próximo sábado, todos deviam estar armados de laços para pegar boi brabo e com os melhores cavalos, os melhores cachorros. No dia marcado saíram para os campos alagados da Lagoa dos Padres onde a capivara morava. Era manhãzinha quando a encontraram, mas os que chegaram mais perto, só puderam confirmar que realmente era um animal de oito patas e usava sempre aquelas descansadas para correr. A caçada foi um fiasco, não conseguiram capturar. A caça fugiu como uma bala ensaboada entrando em lugares impensáveis para cavalgar.
Fizeram nova assembléia para decidir como agir. Chegaram a uma solução muito original: pegaram duplas de cachorros de peso e corpo compatível e usando correias de couro cru, amarraram um nas costas do outro. Assim quando fossem perseguir a capivara, enquanto um cachorro trabalhava o outro estava descansando. Usariam a mesma estratégia da capivara de oito pernas. A perseguição foi bonita e em menos de duas horas de caçada conseguiram encurralar a mutrecona para capturar. Fizeram o serviço sem feri-la, pesava quase trinta arroubas, para transportar foi preciso um carro de boi, avantajado com dezesseis juntas de nelores carreiros.
Foi trazida para Goiânia e marcado para dez dias depois a entrevista com os repórteres da revista. No segundo dia do animal fechado no zôo, aconteceu um acidente. Acostumada a andar na larga onde vivia, não respeitou a altura da cerca e foi parar no reservado da jacaré Jacira, sendo devorada. O jacaré era a maior fêmea de que se teve notícias na América do sul. Media mais de nove metros pesando uns quatrocentos quilos. Não devia estar se alimentando direito, pois comeu a capivara em apenas três dias. O repórter chegou, mas não teve oportunidade de fazer a reportagem sobre a capivara de oito patas, nem quis mencionar o fato, poderia ser um fiasco nacional, mas fez reportagem duma página com foto do jacaré Jacira. Goiânia ficou mais conhecida, por hospedar o maior jacaré da América do Sul.
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CAPIVARA DE OITO PATAS
Short StoryE aí surgiu uma capivara de oito patas. Ninguém queria acreditar neste fenômeno, mas depois dela escapar dalguns bons caçadores a historia desandou e muitos outros interessados vieram e tiveram de acreditar. Finalmente.... bem finalmente.