Falando de Solidão

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Às vezes a arrogância humana nos impede de considerar certos eventos como simples coincidências, como se o universo ou a divindade, se ela de fato existir, se preocupasse o suficiente com sua vida solitária a ponto de armar pequenos joguinhos e preparar situações inusitadas só para te deixar perplexo e reavivar na memória um passado esquecido, mas eu juro que foi isso que eu pensei naquele dia. Afinal de contas, quais as chances de, entre todos os canais de televisão que eu poderia sintonizar e em todos os horários que uma empresa pode agendar uma propaganda, seria justamente naquelas exatas circunstâncias que eu a veria novamente. E quando foi que ela começou a atuar?

            Esse tipo de pensamento é absurdo, já que ela estava na mesma televisão de milhares de pessoas e muito provavelmente em mais de um canal e em diversos horários, sendo assim nem poderia dizer que as probabilidades eram nulas, eu só não esperava por aquilo. Honestamente, se eu soubesse de antemão que isso poderia acontecer, nem teria ligado minha televisão para começo de conversa, mas agora era tarde. Enquanto a imagem dela caminhava com um vestido caro pelo tapete vermelho de uma mansão e um homem, tão bem vestido quando, vinha em direção a ela, e os dois meio que começavam a dançar pelo corredor, fazendo os aromas dos perfumes que eles usavam flutuarem pelo ambiente e se mesclarem, eu era puxado para fora da minha sala, de volta aquele bar um tanto sofisticado no qual eu nunca mais voltara. Um copo frio e suado de uísque, eu sentado sozinho em uma das mesas próximas ao balcão assistindo a um pianista tocar uma interpretação instrumental de uma canção de Duke Ellington, e, logo à minha frente, essa garota de cabelos louros, que na época não passavam muito dos ombros, mas no comercial voavam pelas suas costas como uma cachoeira de ouro.

            Ela sentou na cadeira do balcão e pediu um gin e tônica. Então, enquanto esperava, voltou o rosto ao pianista e eu pude vê-la de perfil; seu rosto lhe dava um ar quase adolescente, embora eu fosse descobrir que ela tinha vinte anos na época, e seus olhos azuis brilhavam a ponto da cor refletir por sua bebida.

            Olhei-a por uns instantes, pensando no que dizer. Às vezes o assunto me vinha como mágica em situações assim, mas não naquele dia. Ainda, sentia como se fosse minha obrigação falar com ela, me torturaria pelo resto da vida pensando no que poderia ter sido se não o fizesse. Em retrospecto - e eu já havia pensado nisso antes daquele dia, mas nunca, até os dias de hoje, pus isso em prática -, a frase "precisava tentar falar com você, pois me torturaria pelo resto da vida pensando no que poderia ter sido se não o fizesse" é romântica o bastante e poderia funcionar, contudo, sempre me esqueço dela ou desisto de usá-la no meio do caminho. Apenas me aproximei e me sentei ao seu lado no balcão. Ela se mantinha atenta no músico e parecia conhecer a composição, então disse:

            - Bom músico, não? - primeira frase que meio veio na cabeça.

            - Ótimo - ela respondeu em tom aparentemente receptivo. - Sabe que música é essa?

            - Se não me engano, Sophisticated Lady. Mas agora ele parece estar improvisando.

            - Não existem mais músicas assim.

            - Talvez existissem se tivesse público pra elas. Esse lugar está vazio - estávamos nós e mais umas oito ou dez pessoas no bar, e ela e eu éramos figuras estranhas, considerando que a média da faixa etária dos frequentadores devia estar entre cinquenta e setenta anos; e ela mesma era mais estranha ainda, já que eu pelo menos me aproximava dos trinta. Ela era uma criança quase.

            - Acho que você tem razão. Ainda assim, fazem falta os Duke Ellingtons, os Cole Porters, Frank Sinatras, esses músicos de verdade - o pianista parou de improvisar e voltou à melodia normal nas últimas frases. - Ah, agora percebi. É Sophisticated Lady mesmo.

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