Na manhã seguinte, ela já não estava lá, e se não fosse por um bilhete com seu nome, número de telefone e um “desculpe, tive que correr”, teria achado que mais da metade da noite passada não fora mais que um sonho estranhamente realista. “Tive que correr”, quem tem que correr em um sábado de manhã afinal? Não importava, ela parecia exatamente esse tipo de garota excêntrica, das que somem por semanas e depois voltam, como um gato, fingindo que nada aconteceu. Gosto dessas relações, me entendo bem com gente que preza por individualidade. Entretanto, por um misto de respeito e curiosidade - ela deixou o número, afinal de contas -, a telefonei naquela mesma tarde e marcamos um encontro em meu apartamento no dia seguinte.
Conversamos enquanto ouvíamos discos dos mortos que nós tanto amávamos – Count Basie, Thelonious Monk, Stan Getz -, bebendo duas garrafas de vinho do porto e outra de tinto seco; até que nossas palavras foram inutilizadas e só nos restava o desejo um pelo outro, não só entre nossos corpos, mas entre nossos seres mais profundos; a vontade que eu tinha de fazer parte dela e vice e versa. Um prazer angustiante, pois nunca parecia ser plenamente realizado - sempre chegava ao fim, quando podia durar eternamente. Então falávamos mais um pouco até decidirmos voltar a nos invadir pouco-a-pouco – provando errado o porteiro em Macbeth e sua teoria do vinho que alimenta o desejo, mas mata a performance -, até a exaustão impedir qualquer novo movimento e só nos restar o sono.
Já nessa nova manhã, fui eu quem tive que correr, porém não tive coragem de despertá-la. Após minha rotina matinal, separei meus papéis para a aula e parei ao lado de Fabi, com seus cabelos espalhados pelo travesseiro e olhos azuis que, mesmo fechados, pareciam cintilar. Levemente, passei a mão pelo seu rosto, afastando alguns fios que o cobriam, tentando não acordá-la, mas ao mesmo tempo esperando que ela acordasse e saísse comigo, já que não sabia exatamente como não deixá-la presa no apartamento, pois só tinha uma chave. Decidi que arriscaria deixar a porta aberta, os casos de invasão de apartamento naquela cidade eram mínimos. Deixei um bilhete ao lado dela, avisando que tinha ido trabalhar, mas, se ela tivesse que ir, a porta estava aberta e ela poderia trancar ao sair, deixando as chaves com o porteiro.
Mesmo decidido, somente meu corpo realmente deixou o apartamento, minha mente a cada cinco minutos retornava ao quarto para checar o sono de Fabi. E se ela se ofendesse por tê-la deixado lá sozinha. Fabi não parecia do tipo que se deixava ofender por qualquer coisa, mas o que são esses tipos? Naquele momento, no entanto, eu tinha que deixá-la de vez, mesmo mentalmente. Era o professor Tomas que tinha que tomar conta de mim, tinha que entrar na personagem.
Começo do quarto trimestre, hora de passar as últimas partes da matéria e os trabalhos finais, para mim isso equivalia à algumas semanas sobre a Alegoria da Caverna, depois outras assustando aos alunos com questionamentos existenciais que logo eles descartariam como "viagem do professor", e finalmente as provas, exatamente iguais as do ano passado, que são iguais as do retrasado. Então é que me atingiu, não precisa ser assim. Eu tenho liberdade para fazer algo diferente esse ano, mesmo que seja rejeitado pelo gosto dos alunos ou que a maioria não se importe, nada disso importava. Minha vida não precisava ser um tédio planejado, desde que eu me esforçasse um pouquinho. Passaria um trabalho diferente, que exigiria interpretação ao invés das típicas horas lendo e relendo livros e anotações. Ainda envolveria Platão e sua alegoria, um passo de cada vez, não havia motivos para revolucionar completamente. Mas não precisava passar aquela prova, que todos os alunos dariam um jeito de arranjar com um colega ou parente do ano superior, para memorizar as respostas. Algo que todo o adolescente de classe média alta de escola particular poderia arranjar. Eles se juntariam em grupos - cinco, seis, quantos fossem -, arranjariam uma câmera e fariam um curta metragem baseado na Alegoria da Caverna. Sem forma definida, apenas seguindo os conceitos que lhes seriam passados em aula, obedecendo um limite de vinte minutos de duração, na estrutura que mais os agradassem. Tinha certeza que um ou dois viriam com materiais surpreendentes, enquanto os outros ao menos me fariam rir do ridículo ao qual eles se submeteriam.
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Falando de Solidão
RomantizmProfessor de filosofia, bêbado e frustrado, relembra de um encontro do passado ao rever uma garota, que ele pensava ter desaparecido de vez, em um comercial na televisão. Da primeira conversa no bar, até as primeiras semanas se conhecendo, e como el...