A FOTO

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Sonhar é acordar-se para dentro.

Mário Quintana



O fotógrafo pendura no varal a imagem recém-lavada em solução química, onde outras tantas secavam. A câmara escura está submersa numa luz escarlate; a réplica dum inferno particular. Passados alguns minutos a foto se revela e, após atenta observação, causa no fotógrafo um incômodo peculiar.

Na fotografia uma mulher sem expressão segura uma câmera fotográfica na altura dos seios, como se tirasse fotos à deriva. Não possui muita beleza, entretanto sua estética detém algo inexplicavelmente sensual. Cabelos longos e castanhos, tez parda e olhos abstêmios. O olhar sorri; algo que os lábios não permitem.

O cenário é o mais estranho. Por trás dela, prolongava-se um gramado sob um céu hemorrágico. Um lusco-fusco de outono. Ao longe uma árvore com uma copa que parece sustentar o mundo de tão imensa.

Não me lembro dessa foto... O fotógrafo pensa enquanto perscruta os detalhes da imagem. Parece algo feito no Photoshop para alguma propaganda de xampu novo.

Desistindo de lembrar-se a origem da foto, o fotógrafo recoloca-a no varal junto das irmãs. Sente-se exausto e sedento por um drinque. Trabalhou a semana a todo vapor. Naquela noite esteve num casamento grego. O maldito som dos pratos arrebentando com estrépito no chão e nas paredes ainda parecia ecoar na mente. Vai à cozinha e prepara gim-tônica. Volta à sala e desaba na poltrona, diante de uma réplica enorme de Bosch; uma concatenação de figuras híbridas em interação.

Quando estava cansado demais, o fotógrafo permanecia sentado ali, vazio de pensamentos coerentes. Cochilava ou simplesmente coadunava-se à escuridão da sala, deixando a mente vaguear a deriva em mares nunca d'antes navegados. Aquela noite, sente-se tão exausto... é como estar doente. As costas doíam-lhe deveras e a cabeça pulsava inquieta.

Afundado no estofado da poltrona, com a gim-tônica pela metade pendurada no indicador, o fotografo flagra-se pensando na misteriosa fotografia. A mulher e a câmera... título absurdamente óbvio e sem criatividade... pensa, Experimentando uma ilógica sensação de familiaridade com a desconhecida. Conhecia-a? Seria possível?

- Não... – balbucia, deslizando para as catacumbas do sono.

A taça escorrega do indicador e a Gim derrama-se na alfombra persa.

Talvez a conheça sim... O quadro de Bosch sussurra-lhe; as formas humanas e animais fitando-o com olhinhos de piche. Talvez a tenha encontrado ontem mesmo...

O pensamento incongruente o faz abrir os olhos na escuridão da sala. Por um instante consegue imaginar a versão viva da mulher da fotografia. Imagina-a subindo a pradaria em direção a árvore imensa, sempre o convidando com olhos sorridentes, olhando sobre os ombros nus enquanto o vento açoita-lhe os cabelos. A imagem ganha uma nitidez tão assustadora que o fotógrafo consegue divisar as folhas singrando o ar e o rumorejar do vento. Então a seguia segurando a câmera. Espera a oportunidade de fotografá-la, registrar a beldade em seu...

... sonho... um sonho prá lá de esquisito... um homem-peixe (ou peixe-homem) da Tentação de Santo Antônio sussurra no quadro.

Subitamente o fotógrafo levanta-se da poltrona num salto. Tem a súbita e absurda compreensão de tudo. Seus olhos arregalam-se diante da revelação. As imagens trazidas pelo sono não eram meros delírios, mas lembranças do seu sonho da noite passada!

- Deus... – Balbucia.

Sem pensar duas vezes, corre para a câmara escura. A fotografia continuava lá, pendurada e imóvel. Retira-a do varal. Ao observá-la com mais atenção, a lembrança do sonho organiza-se completo na memória. Havia sonhado que perseguira essa mulher por pradarias intermináveis e, em certo momento, ela se virara e o fitara com uma expressão muito bela. Só naquele instante ele notara que estava com sua câmera de trabalho. Ela também possuía uma a tiracolo. O fotógrafo disparou a foto, fazendo a mulher sorrir. Ela também tirara uma foto e foi o flash da máquina dela, estranhamente forte para uma câmera comum, que o despertara pela manhã.

Conto - A fotoOnde histórias criam vida. Descubra agora