Felipe fechou os olhos por um momento. Talvez aquilo fosse um pesadelo.
Mas quando ele abriu os olhos novamente, a garota ainda estava lá, com seus cabelos ruivos desgrenhados e suas unhas roídas. Estava sentada na cadeira de forma desleixada, batucando na mesa com as baquetas do xilofone. Estava sempre batucando alguma coisa. Era irritante.
– Será que dava pra você parar de fazer barulho? – ele perguntou, quase rosnando.
Ela parou. Ficou olhando para as baquetas por alguns segundos, em silêncio. Depois encarou Felipe.
– Como é? A gente vai começar esse trabalho hoje, ou...
– Eu já disse... A gente devia ir falar com o professor e pedir pra fazer o trabalho individual. Isso aqui nunca vai dar certo.
– Se você parasse com essa má vontade, ajudaria muito. – ela respondeu.
– Tá, então pode ir pra casa que eu faço sozinho. Coloco o seu nome lá e fica tudo certo. – propôs Felipe, torcendo pra que ela aceitasse a oferta.
– É, imaginei que você tentaria me dispensar. Novidade de última hora, André Rieu: o professor mandou fazermos o trabalho juntos e é isso o que nós vamos fazer.
O sangue dele ferveu quando ela o chamou de André Rieu.
– Você não sabe nada sobre compor. Você não sabe nada sobre nada. Alguém que estuda música durante cinco anos só pra bater em um prato não tem capacidade de compor nada bom. A única coisa que você vai fazer nesse trabalho é atrapalhar.
Felipe esperou que ela se ofendesse e saísse da sala pra nunca mais voltar. Em vez disso, ela suspirou e respondeu, sem o menor sinal de irritação:
– Bem que me avisaram sobre você.
Malu tinha mesmo sido avisada. Nenhum dos amigos dela gostava de Felipe. Um deles tinha dito que ele seria capaz de matar a própria mãe pra ser o primeiro violino da orquestra.
Mas Malu não acreditava totalmente no que diziam. Às vezes, as pessoas podem surpreender. Felipe a deixava curiosa. Ele estava sempre sozinho em alguma sala, praticando o violino. A garota nunca o tinha visto sorrir e nunca o via acompanhado. Foi por isso que, quando o professor a colocou como dupla dele no trabalho de composição, ela achou que fosse a oportunidade perfeita pra descobrir o que havia por trás daquele garoto oriental esquisito.
Felipe provocava nela dois sentimentos: o primeiro era curiosidade, e o segundo era dó.
Ela nunca vira ninguém tão sério nem tão sozinho. Talvez ele só precisasse de ajuda.
Mas era difícil pensar nisso enquanto ele se empenhava em chamá-la de inútil.
Mais dois minutos de silêncio. Malu ficou girando as baquetas entre os dedos, e Felipe não voltou a argumentar. Ele pegou o violino e começou a tocar alguma coisa de Bach.
– Toca Viva la Vida? – perguntou Maria Luísa.
Felipe parou de tocar, deixando o arco suspenso.
– Como?
– Viva la Vida. Do Coldplay. Eu sempre quis ver alguém tocando aquela introdução legal no violino.
– Nunca ouvi falar. – Felipe respondeu friamente.
– Sério? Nunca ouviu falar em Coldplay? – perguntou Malu, surpresa – O que é que você ouvia lá no Japão?
Felipe sentiu o impulso de atirar o arco na cabeça dela. Mas não faria isso, é claro. Aquele era um ótimo arco.
– Eu sou descendente de chineses, sua descerebrada. Nunca estive nem no Japão e nem na China.
Pobrezinho, pensou Malu. Até pra xingar ele tinha classe. Vai ver, nunca ouviu um palavrão na vida.
– Desculpa, eu só tava brincando. Suspeitei que você fosse brasileiro, mesmo. Seus olhos não são tão puxados.
Ele a olhou com desprezo. A garota já tinha reparado que aquele olhar não era reservado exclusivamente para ela. Ele tratava todo mundo assim. Como se ele fosse infinitamente superior ao resto do mundo.
– Você devia ouvir Viva la Vida. É uma música legal que fala sobre uma pessoa que vivia no topo do mundo, em cima de um pedestal, até que a vida o arrancou de lá de cima. É uma boa canção pra refletir sobre humildade. É uma ótima virtude, sabia?
Felipe bufou, impaciente.
– A vida não faz nada. É a gente quem faz a vida. Eu, por exemplo, decidi que vou ser primeiro violino não só da orquestra jovem do conservatório. Vou ser o primeiro violino da Filarmônica de Berlim. É um longo caminho, e no momento você está bem no meio, atrapalhando.
– Talvez eu acabe te ajudando. Você não devia me subestimar tanto. – disse Malu, olhando pensativamente para uma de suas baquetas.
***Nota da autora***
Olha só quem reapareceu? Eu mesma, a Stella! haha
Gente, enquanto eu trabalho no meu outro livro, decidi postar essa historinha que é bem curta e levinha. Estava morrendo de saudades de postar alguma coisa, de verdade.
Vocês devem ter percebido que o estilo da história é bem diferente do de "Sob o mesmo teto", mas estou na torcida pra que vocês curtam mesmo assim. hahaha
A opinião de vocês é super importante, então deixem comentários e fiquem à vontade para conversar comigo. Um abraço!
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Arco e Baquetas
Teen FictionFelipe Huang é um jovem violinista disposto a não deixar nada atrapalhar seus objetivos. Concentrado, ambicioso e completamente dedicado à música, ele já tem sua vida cuidadosamente planejada. Mas nem sempre as coisas acontecem conforme o previsto...