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Felipe respirou fundo. Levantou da cadeira. Sentou na cadeira novamente. Posicionou o violino. Começou de novo.

Dessa vez, ia tocar decentemente. Afinal, aquela era a vigésima sétima tentativa.

O fraseado saiu uma bela porcaria. O vibrato sequer saiu. Durante a cadência, Felipe escutou bem cada som produzido e se perguntou se estava tocando violino ou assassinando um maldito gato.

Sentiu algo ferver dentro dele. Depois de tanto tempo estudando aquela peça, como ainda podia estar tocando daquele jeito? Como podia estar piorando, em vez de melhorar? Era inaceitável. Pensou em desistir, mas aquela não era uma opção. O teste era dali a poucos dias. E de qualquer forma, aquele verbo, o verbo dos perdedores e preguiçosos, não existia no vocabulário dele.

Tentou engolir o ódio e recomeçou a música. Era a vigésima oitava tentativa. Mal chegou ao sexto compasso e seu desempenho já estava uma droga. Sentiu vontade de gritar, de quebrar o violino em pedacinhos, de chutar um bloco de concreto ou esmurrar a cara de alguém. Em vez disso, ele apenas atirou o arco do violino contra a parede, mudo, com lágrimas de ódio nos olhos e respiração descontrolada.

Malu entrou na sala de ensaios a tempo de ver a trajetória do arco voador.

– Uau. Eu realmente não queria ser esse arco. - ela sussurrou.

E então, a garota viu a expressão no rosto dele.

É, talvez fosse uma boa ideia voltar depois. Felipe parecia ansioso pra estrangular alguém.

Malu pegou o objeto do chão e percebeu que, felizmente, ele não estava danificado. Ela começou a se aproximar de Felipe com a cautela de quem se aproxima de um pitbull. Ergueu o braço lentamente e devolveu o arco a ele.

– Você não vai me morder, vai? - ela perguntou, com uma risadinha nervosa.

Mas olhando bem de perto, ele parecia mais desesperado que bravo.

– Ei. Você tá com uma cara péssima. O que aconteceu? - Malu perguntou, um tanto preocupada. Esperava que ele não tivesse surtado de vez.

Felipe nem sequer respondeu, o que era um péssimo sinal. Ele esfregou os olhos com força e ficou olhando para o chão com um olhar vazio.

– Cara... Qual é o problema com você, hein? - ela perguntou novamente, num tom de voz muito baixo. Tocou o ombro dele com a mão esquerda, já que a outra estava ocupada com as baquetas de sempre.

Quando Malu o tocou, Felipe finalmente se perguntou por que é que ela estava ali. Da última vez, ele a tinha tratado tão mal que achou que ela nunca mais se aproximaria de novo. E, no entanto, aquela garota estava ali mais uma vez, olhando para ele com aqueles olhos grandes e atenciosos.

Ele não tinha energia pra continuar sendo um babaca com ela.

Malu se sentou ao lado dele e eles ficaram em silêncio por alguns segundos que pareceram minutos.

– Eu encontrei o professor de composição, hoje. Ele disse que gostou do nosso trabalho. Disse que achou... Criativo e bem estruturado. - disse Malu - Talvez, a gente não seja uma dupla tão desastrosa como você pensou.

– Ah. Legal. - murmurou Felipe.

Ele parecia fora do ar.

– Por que você está assim? Cara, diz alguma coisa, você está me assustando.

Ele olhou para o violino.

– Eu não consigo tocar a música direito. Não consigo me concentrar, eu fico o tempo todo pensando que..

Felipe interrompeu o que dizia. Aquela garota era quase uma desconhecida, ele não tinha nada que ficar falando de sua vida pra ela.

– Quantos anos você tem? - ela quis saber, quando viu que ele não iria terminar a frase que tinha começado.

– Dezesseis. - ele respondeu de forma automática, sem interesse algum de levar aquela conversa adiante.

– Sério? Você tem a minha idade? Achei que fosse mais velho. - disse Malu, surpresa.

Ela se perguntou se os pais dele eram aquele tipo de pais malucos, que fazem pressão psicológica e obrigam os filhos a estudar vinte e quatro horas por dia. Devia ter um motivo pra que Felipe tivesse uma relação tão intensa com o violino.

– O que você estava tocando? - ela perguntou.

– Eu estava tentando tocar o Concerto nº 3 de Mozart. Ficou uma porcaria.

– Eu sei do que você precisa. - disse Malu - Se você confiar em mim, prometo que até o final do dia você vai estar tocando violino com a naturalidade de quem assobia.

Felipe olhou bem nos olhos dela por um longo tempo, coisa que não tinha muito costume de fazer com as pessoas em geral.

– Eu não sei assobiar.

Malu riu e o puxou pela mão.

Uma das lições que ele aprendera na vida é que confiar nas pessoas raramente era uma boa ideia. Mas havia algo nela que o fazia se sentir pronto para se mover. Havia algo no olhar dela que o fazia querer uma aventura. E, pra ele, aventura era qualquer coisa externa àquelas quatro paredes.

Então, Felipe calou por um minuto todas as hesitações que gritavam em seu interior e se levantou da cadeira, disposto a seguir aquela ruiva estranha por onde quer que ela fosse.

– O violino vem com a gente. - Malu disse de forma decidida, guardando o violino e o arco dentro do estojo - E eu preciso pegar a minha mochila na sala de percussão.

Quando eles saíram do conservatório de música correndo, Felipe sentiu uma sensação enormemente peculiar. Era como se estivesse fugindo de um presídio, e o presídio fosse ele mesmo.

– Por que é que nós estamos correndo? - gritou Felipe, tentando alcançar Malu, que disparava pela calçada um pouco a frente dele.

– Sei lá. Porque é legal? E porque quanto mais cedo chegarmos onde temos que chegar, melhor!

Felipe se perguntou onde raios eles tinham que chegar. De qualquer forma, onde quer que fosse, o que ele estava sentindo naquele momento... Era incrível. Devia ser a primeira vez na vida que ele fazia algo tão incerto e impulsivo.

Desejou naquele momento que nada o parasse. Porque, desde sempre, quando ele começava a fazer algo realmente empolgante aparecia algo ou alguém pra botar freios. Para fazê-lo desacelerar. Mas dessa vez, seria diferente.

Dentro dele, queimava uma ordem pro mundo todo.

Don't stop me now

'Cause i'm having a good time

Ele continuaria correndo pela rua como louco, até chegar ao destino incerto que o aguardava. E ninguém o pararia.

Arco e BaquetasOnde histórias criam vida. Descubra agora