A Noite Mais Escura

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"A noite acendeu as estrelas porque tinha medo da própria escuridão."

— Mário Quintana

Àquela altura do dia o sol já se assemelhava a um grande balão de ar alaranjado que ia perdendo todo o seu esplendor. Ele descia devagarzinho e tremulante por detrás das longínquas colinas arroxeadas no horizonte, desaparecendo humildemente. No pequeno, mas abundante roçado daquela família, o pai dera a sua última enxadada na terra. Ele se ergueu sisudo, apoiou um dos braços no cabo da sua enxada, limpou o suor da testa com as costas do outro braço forte e escuro e franziu os olhos quando viu o pôr-do-sol. Olhou para o filho mais velho que o ajudava na labuta e fez um sinal rápido com a cabeça apontando na direção da casa. O menino recolheu a sua enxada e seguiu o pai.

Na cozinha, mãe e filha terminavam de preparar o jantar enquanto o caçula da família brincava no chão frio com os seus carrinhos de madeira. As duas mulheres correram os olhos pela sala ao ouvirem o som dos passos apressados dos dois homens que acabavam de entrar sala adentro. A porta e as janelas foram sendo fechadas rapidamente e quase que automaticamente pelos dois homens como se eles tivessem prática naquilo. A criança interrompeu a sua inocente brincadeira para observar boquiaberta e sorridente o seu pai e o seu irmão fecharem todas as entradas da sala. No mesmo instante ela voltou os olhos para a sua mãe e sua irmã que haviam parado de mexer nas panelas para trancar as janelas e a porta da cozinha. No fim ela soltou uma risadinha quase estridente e voltou a atenção para os carrinhos jogados no chão duro da cozinha.

O pai e o filho descansaram as suas enxadas em um canto vago da cozinha e sentaram-se à mesa, calados como dois mudos. A mãe começou a pôr os pratos, copos e talheres na mesa enquanto a filha terminava a comida. O filho mais velho passou a mão pela cabeça redonda e branca do seu irmãozinho e acariciou os poucos fios de cabelo que o pequeno tinha. O pai esboçou um ligeiro e bronco sorriso e logo fechou a cara. A filha foi trazendo as panelas com o jantar ainda fumegante para o centro da mesa e sem cerimônia os homens da família começaram a se servir. As mulheres se juntaram a eles quase que imediatamente. A criança sorria ainda no chão com os seus brinquedos, engatinhando de um lado para o outro em volta da mesa. Nenhum deles falava qualquer coisa. Apenas os talheres falavam.

A criança irrompeu em um choro assim que a sua família havia terminado o jantar. O pai havia saído para a sala, deitado o corpo cansado e pesado na sua cadeira de balanço e colocado o rádio à pilha para tocar uma música lenta e triste. A mãe e a filha estavam levando os pratos e talheres sujos para a pia e começado a lavá-los quando o irmão mais velho apanhou o garotinho do chão e começou a niná-lo em seus braços, andando devagar da cozinha à sala e vice-versa até fazê-lo adormecer. Levou-o ao seu quarto e o deitou cuidadoso em seu berço. Depois saiu e deixou a porta entreaberta. A melodia deslizava pelos recantos da casa como uma cobra preguiçosa. O som dos pratos se chocando em meio à espuma da água na pia dava um toque especial à canção. O filho mais velho se juntou ao pai na sala. A noite derramou a sua escuridão ali.

Na cozinha uma lâmpada foi acesa, mas não chegava a tocar a sala. O pai parou de balançar o corpo para frente e para trás, levantou-se e também acendeu uma lâmpada. O filho parecia indiferente àquilo. A música terminou e o pai quis ouvi-la novamente. Mãe e filha juntaram-se aos dois na sala. De início se limitaram a ficarem paradas como se esperassem por algo. O pai as olhou e assentiu com a cabeça, voltando a sua cadeira. O filho percebeu a lâmpada da cozinha ainda acesa e fez um rápido sinal para a irmã que imediatamente entendeu e correu até lá para desligá-la. Depois voltou mais rápido ainda e sentou-se junto à mãe em um sofá. A família inteira ouvia em silêncio a canção preferida do pai. O ranger da cadeira de balanço provocado pelo vai e vem do corpo do pai era uma espécie de acompanhamento irritante, mas ninguém reclamava.

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