A perda

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       Uma dor profunda se apoderou de mim, e a esperança foi substituída pelo terror e pela agonia daquele momento. Enquanto as lágrimas caíam devagar, aumentando logo em seguida e sendo complementadas por soluços. Eu só desejava gritar naquele momento. Queria acreditar que tudo não passava de uma grande mentira. De uma brincadeira sem graça. Então, em um impulso repentino, corri em direção aos policiais que a carregavam, para me certificar de que era mesmo Elisa. Não vi o corpo dos meus pais quando eles se foram, eu era apenas uma bebê. Eu precisava ver o dela. Eu precisava ter certeza de que se tratava da garota enigmática e encantadora que eu conheci. A garota que emprestei meus cordões e ajudei a contornar seu batom vermelho, Eu precisava, com toda a força que havia dentro de mim, me certificar de que não era mesmo um pesadelo.

A Sra. Clarice me viu passar agilmente, pisando nas poças de lama com a velocidade que só o completo desespero nos proporciona. Desesperada, ela correu ao meu encontro, numa vã tentativa de conter a minha reação. Fui impedida de me aproximar. Os coordenadores me puxavam, com palavras de consolo e, ao mesmo tempo, me alertavam de que eu não deveria estar ali. Meus braços queimavam devido aos puxões. Eu tentava, com uma força que jamais imaginei possuir, correr ao encontro do corpo sendo carregado. Tendo como principal impulso, o desejo aterrador de descobrir uma verdade diferente da que eu tristemente esperava. Estava em negação. A primeira fase do luto.

Fui levada para perto de alguns poucos alunos próximos ao refeitório, que também observavam horrorizados. Ana gritava deitada sobre a extremidade do lago, onde o corpo de Elisa foi encontrado. Professores e alguns alunos tentavam ajudá-la e a seguravam para que ela saísse do local. Havia lama em seu rosto, pois ela segurava a terra à beira do lago com força, enquanto gritava. Lama e lágrimas se misturavam em uma cena que nunca sairia da minha memória. Minha pobre memória, já tão calejada por lembranças que eu gostaria de esquecer.

•••

Quando carregaram o corpo, Beto não foi capaz de olhar. Sentou-se sobre o chão molhado, com a cabeça entre as suas pernas, rígidas como se estivessem prestes a ficarem, para sempre, naquele chão lamacento. Chorava aflito, desconsoladamente, de tal maneira que ninguém se atreveria a lhe conceder uma palavra de conforto. Aqueles clichês banais não trariam qualquer efeito. O pior já tinha acontecido e, nem mesmo eu, que sempre tive aptidão com as palavras de consolo e conselhos, estava emudecida. Como se minha voz tivesse se afogado naquele lago também. Eu ainda pude ver, a contragosto, e quase em câmera lenta, aqueles cabelos loiros. O longo vestido branco, molhado e sujo pela lama daquele rio. Vi meus cordões que ganhei de natal e foram emprestados para uma noite especial. Eles agoram enfeitavam o pescoço pálido e gélido de um corpo sem vida.

Após esses flashes macabros, tudo se tornou escuro. O céu cinza daquele dia não poderia fazer mais sentido. Senti vertigem ao olhar aquela cena. Uma tontura inquietante. Meu coração estava a mil, com um desejo abrupto de fugir daquele lugar, para nunca mais voltar. Em meu íntimo, eu desejava, ingenuamente, nutrida por aquela doce e falsa esperança - sempre a última a morrer - que aquele corpo não pertencesse à Elisa.

Raquel e Charlotte se aproximaram, incrédulas. E pouco a pouco os alunos saíam dos seus chalés, todos perplexos. Alguns choravam ainda sem acreditar, e a cena lamentável de Ana chorando em completo desespero, gritando por sua irmã, tornava todo aquele momento, uma cena horrorizante e dramática o bastante para jamais ser esquecida por cada um de nós que tivemos a infelicidade de presenciar.

Quando os pais de Ana e Elisa chegaram, a Sra. Clarice tentava ao máximo conter a mãe que estava em prantos. Aquela mulher que vestia roupas, claramente de grifes caríssimas, com seus saltos e cabelos impecáveis, jogou-se, sem pestanejar, no chão lamacento do acampamento. Ela esbravejava a plenos pulmões, ora que a culpa era da Sra. Clarice por não oferecer segurança aos alunos, ora culpava-se por ter permitido que elas fossem. Ana correu para abraçá-los e a família ficou por pouco tempo no acampamento. Logo foram levados para a cidade por um policial. O pai das garotas estava impossibilitado de dirigir o seu carro, completamente em choque.

Eu ainda observei aquela mulher tão nova para ser mãe de duas garotas adolescentes, abraçar Ana com afinco, olhar em seus olhos e balbuciar palavras que eu gostaria de poder ouvir. Palavras que eram entrecortadas por seu choro ininterrupto, por seu olhar para o lago, para a Sra. Clarice - com absoluto ódio - e para o seu marido, que não emitia uma única palavra. Ele parecia absorto em seus pensamentos, emudecido por um sentimento que não sabia pôr em palavras. A verdade é que nunca sabemos.

Eles foram embora, e eu acompanhei de longe até o carro sumir na estrada. Vi os cabelos loiros de Ana, e senti um enorme pesar. Olhar para ela, seria sempre uma forma de lembrar de Elisa, e de sua trágica história.

- Não consigo acreditar – dizia Charlotte para si mesma, baixinho. Enquanto segurava meu braço com força.

Tentei inútilmente dizer alguma coisa, mas palavra alguma saía da minha boca. Eu estava mais uma vez lidando com a dor da perda mas, dessa vez, a perda veio carregada de inúmeras perguntas sem respostas. Todos os coordenadores e professores recomendaram que deveríamos voltar para os nossos chalés. Não era apropriado ficar ali naquele local onde agora seriam iniciadas novas investigações. Fomos avisados que dentro de algumas horas o ônibus da escola chegaria para nos levar de volta para a cidade e deveríamos estar todos prontos até às dez horas da manhã.

Entramos no chalé e ficamos sentadas em nossas camas, assustadas com tudo à nossa volta. Raquel dormiu depressa, enquanto Charlotte olhava para a janela prestando atenção nas gotas de chuva que desciam lentamente, com seu pensamento distante e um olhar sombrio, até que, aos poucos, também caiu no sono. O barulho da chuva lá fora era o único som que me impedia de enlouquecer. Tudo ao nosso redor era silencioso e vazio. Meu pensamento estava a mil, e era como conter uma tempestade. Me sentia impotente, imersa em vozes que especulavam sem parar o que havia acontecido. Imersa como em um lago profundo e escuro. Como aquele onde o corpo de Elisa foi jogado, como um pedaço insignificante de qualquer coisa.

Meus olhos aos poucos se fechavam, estava exausta, e com um peso inquietante no coração. Eram seis horas da manhã e eu ainda não havia dormido. Quando finalmente adormeci, tive um pesadelo muito real. Nele, Elisa estava se apresentando com o Beto, que parecia feliz e orgulhoso da sua namorada, todos estavam animados com a pequena apresentação. De repente, as luzes se apagaram, e quando reacenderam, Elisa não estava mais lá. Em seu lugar, um corpo sem vida. Todos olhavam espantados, sem entender o que havia acontecido. Acordei assustada e olhei tudo à minha volta, queria ser invadida pelo alívio, mas eu havia acordado de um pesadelo para entrar em outro, ainda pior.

Raquel e Charlotte já estavam acordadas, arrumando suas coisas, retirando todos os lençóis e travesseiros. Do outro lado do quarto, estava a cama antes ocupada por Elisa, intacta. Com todas as suas coisas ao redor, um tanto reviradas. Muitas delas foram levadas pelos policiais para contribuir nas investigações, mas ainda restaram algumas poucas. Me levantei, dolorosamente. Meus olhos ardiam devido às lágrimas durante toda a madrugada. Além disso, minha cabeça latejava. Depois de um banho, terminei de arrumar a mala, recolhi tudo que havia restado de Elisa, com luvas apropriadas que a Sra. Clarice o havia deixado na entrada do chalé, prevendo que eu o faria. Coloquei tudo em sua bolsa, imaginando que tratava-se de um material para as investigações futuras também. Saí do chalé com o desejo de adentrar em um outro universo, onde nada daquilo seria verdade. 

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