Prólogo

38 1 0
                                    


Havia uma ligação entre o passado e meu presente, era tudo o que eu sabia. Por algum motivo eu nunca esquecia de certas coisas. Rancor talvez ? Para os outros isso não era uma dúvida e sim uma certeza. Com o tempo, descobri de forma inesperada que se tratava de superação. Eu não esquecia de uma falha até eu superá-la! Seja uma falha física ou psicológica, jamais sairá da minha mente se eu não superar.

Estou a duas ruas da minha casa, sobre um edifício em construção. Os trabalhadores do mesmo me olhando com indignação ao me verem correr entre ripas de madeiras e vigas de sustentação. Isso faz parte de uma superação também. A três anos eu não consegui saltar deste prédio em construção para o terraço mais próximo, a casa da minha vizinha. Lembro-me perfeitamente que naquele fatídico dia eu acabei por atravessar com tudo a janela do quarto da idosa. Reclamações sem fim, dor sem fim, vidros sem fim e, claro, um pote de cereal em minha cabeça com leite, sem fim.

Hoje seria diferente! Há, estou com todo gás acumulado de noventa dias sem aprontar nenhuma façanha envolvendo parkour, ossos quebrados ou alguma janela quebrada.

Cyrus, denovo você aqui! Colabore moleque, meu patrão já disse que iria te processar, e eu pro olho da rua!

Nate, um dos chefes de obra do edifício gritava a todos pulmões tentando me acompanhar. Logo estávamos no corredor de quinze metros retos que terminavam em uma enorme queda até o terraço de minha vizinha idosa comedora de cereais. O prédio havia crescido dois andares nesse tempo que estive engessado, eu havia calculado isso.

Vamos lá nate, você vai fazer o que, pular junto comigo!?

O desafiei com um sorriso extremamente irônico, disparando a toda velocidade enquanto os quinze metros diminuíam rapidamente até não ter mais chão para eu pisar. Fechei os olhos enquanto meus ouvidos tomavam conta do ambiente ao meu redor. A voz grave de Nate me xingando, o vento cortado e violento contra meu corpo, a sensação de que estava indo em direção a um muro e o sol quente sobre meus olhos fechados, criando um brilho interessante sobre minhas pálpebras fechadas, um brilho vermelho. Quando a sensação de que o "muro" estava praticamente me beijando se tornou insuportável, abri meus olhos para saber o resultado de meu salto.

Mais uma falha anotada. De cara percebi que não havia altura suficiente para eu aterrizar com segurança no terraço, mas também estava longe da possibilidade de quebrar meus ossos no chão. Tudo o que via a alguns metros com nitidez era, ironicamente, a janela reconstruída de minha vizinha idosa. Isso mesmo, meus caros. Lá vamos nós janela a dentro denovo. Vidro pra todo lado, idosa gritando, dor insuportável e sem se esquecer do cereal. Nada contra quem gosta, mas...

Bom dia senhora Aga...

Não tive tempo de terminar a frase a qual gritava em pleno ar. Encolhi minhas pernas e braços para junto do dorso, pondo as mãos em punho a frente da massa humana que eu era afim de proteger pontos vitais e logo veio o impacto.

No começo senti apenas o vidro cedendo a meu peso, rugindo em fragmentos para todos os lados. Esperei pelo impacto pior como da última vez, o fim do chão onde capotaria e bateria com tudo na parede, por fim meus ossos se quebrando. Mas não veio, não veio nada disso. Meu corpo se chocou contra algo macio e em seguida, através de uma cambalhota quase involuntária, estava de pé deslizando pelo piso liso daquele cômodo até cair confortavelmente sentado com as costas escoradas na parede. Ainda com os olhos fechados e os braços cruzados a frente do rosto, comecei a formular uma desculpa a minha vizinha, estranhando o fato de não detectar o aroma de cereal ao leite no ar.

Me desculpe dona Agatha! Dessa vez foi mesmo sem querer. Como eu poderia adivinhar que dois andares a mais não seriam o suficiente? Eu estou com meu cartão, prometo pagar a jane-

Fui bruscamente interrompido por um grito agudo que feriu minha audição permanentemente. Abri os olhos curioso, somente para me deparar com uma adolescente completamente corada trajada apenas de uma camisola em frangalhos devido a alguns vidros que passaram mais perto do que deveriam ao se quebrar.

Você não é a dona Agatha.

Conclui engolindo em seco. Sem dizer uma palavra sequer, a garota alterou sua expressão de imediato. Conhecia bem essa mudança, era o espanto dando lugar a raiva. Ela terminou por rasgar a renda de sua camisola e usou o tecido para amarrar as partes... Íntimas por assim dizer.

De-de verdade, me desculpe , seja lá quem você for.

Ela se levantou de sua cama a qual eu havia pousado a poucos segundos. Seu olhar de cima era soberano, uma rainha prestes a punir o plebeu insolente.

Seja lá quem eu for ? Não se importe com isso, eu sei quem você é

Pera... Sabe ?

Claro que sei, É UM GAROTO MORTO!

Seu corpo esguio e exuberante girou com uma leveza inacreditável, leveza falsa que por um segundo não me decepou. Abaixei meu corpo em uma cambalhota no exato momento em que sua perna passa por cima de mim em um chute assombroso. Me virei para ela a tempo de me erguer e notar a rachadura na parede que seu pé deixara. Aquela rachadura deveria estar na minha cabeça!

Morto!? Qual é, é só uma janela!

Dialogar era inútil, a moça ficou de frente para mim e com apenas dois passos cobriu a distância entre nós. Um soco armado disparou contra minha face, soco que fui capaz de interceptar a tempo e este foi meu maior erro do dia.

Geralmente a mente de um ser humano analisa, identifica e processa os elementos que seus sentidos enviam quase de imediato, uma verdadeira máquina! Mas em que raios de situação, eu iria associar aquele chute e este soco ao fato de ela saber jiu jitsu!? Tudo bem, já passou. Vamos continuar.

Três movimentos foi tudo o que a moça de cabelos ruivos cacheados, olhos negros de pantera e corpo delicado de boneca precisou para fazer um marmanjo com quase duas vezes o seu tamanho voar janela a fora. Sua mão se desdobrou ágil como uma serpente se livrando de mim. Apertou meu braço esquerdo apenas o conduzindo para cima, onde ela deu um soco preciso na articulação de meu cotovelo, me dominando por completo. Senti seus pés descalços deslizarem no piso, seu corpo se colou ao meu a ponto de eu conseguir sentir perfeitamente seu cheiro natural, sem perfume ou algo artificial. Em um suspiro calmo e frio, ela girou meu braço, meu corpo e meu mundo como se fosse a coisa mais natural possível de se fazer, me lançando janela a fora. Seu rosto me fitando da janela tinha uma expressão vitoriosa, satisfeita com seu feito, enquanto eu caía dois andares até o gramado. Minhas costas ardeu a princípio, mas logo a adrenalina do momento faria eu esquecer da dor.

Um ótimo dia pra você, tarado!

Seu cabelo esvoaçou na janela enquanto ela se retirava daquela cena. Fui capaz apenas de dar um aceno e estalar meu corpo para saber se estava tudo no lugar.

Credo... nunca mais irei reclamar dos cereais, dona Agatha. Eu prometo !

Pulei o cercado da residência e logo estava caminho de casa, com o corpo dolorido e Nate ainda gritando do alto do edifício. Que velho persistente!

Bom, perceberam algo? Eu sim. Naquele dia eu havia falhado mais uma vêz, pra variar... Mas não me lembrei disso. Aquele dia não foi marcado por rancor ou por minha falha. Foi marcado como o dia que a conheci. E talvez quem sabe, conhecer ela tenha sido o ponto chave para eu estar na atual situação em que estou...

Coliseum: GuerreirosOnde histórias criam vida. Descubra agora