Pandora

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Começou numa terça-feira, lembro-me como se fosse hoje. Eu estava por acaso com a tv ligada no jornal quando o apresentador noticiou sobre uma estudante de medicina que, enquanto voltava do almoço para o trabalho, do nada começou a agredir as pessoas.

Primeiro, ela acertou em cheio um soco na cara de um aposentado que atravessava a rua. Mal o idoso caiu no chão e a mulher já o estava chutando, às gargalhadas – enfatizava o apresentador com sua voz rouca. Alguns segundos preciosos haviam se passado até que as pessoas próximas tomaram consciência da situação e tentaram segurar a louca varrida, que distribuía cusparadas, socos, pontapés e mordidas. No final, ela conseguiu escapar, mas foi imprudentemente de encontro a um ônibus que arremessou seu corpo a metros de distância.

Em seguida o jornal mostrou parentes e amigos da agressora tentando explicar como ela parecia ser uma pessoa normal e atribuindo o ocorrido ao estresse e depressão.

Infelizmente o idoso não resistiu às agressões e faleceu. As outras pessoas feridas no ocorrido foram encaminhadas a um hospital próximo.

No dia seguinte, pela manhã, um jornal sensacionalista destacou um grupo de pedreiros que matou três mauricinhos, sendo um deles menor de idade, alegando que "era a vez dos nordestinos darem o troco". No almoço, uma respeitável e bondosa merendeira de uma escola pública aproveitou o recreio para jogar álcool nas crianças e atear fogo em seguida. À tarde, um pastor evangélico e seus diáconos foram encontrados sodomizando seus fiéis, inclusive as crianças, justificando seus atos em prol da família.

Até a noite de quarta, somavam-se mais de vinte casos bizarros. Levou mais quinze dias e quase duas mil mortes para que alguém se pronunciasse. Uma junta científica divulgou que a causa era um vírus que agia direto na química do cérebro, principalmente o córtex pré-frontal, afetando nosso controle emocional, de impulso, julgamento e discernimento.

Os cientistas o chamaram de Pandora. Assim como a jovem que ao abrir a caixa libertou todos os males do mundo, o vírus libertava o pior que havia em nós. No início, acreditava-se que as chances de Pandora se espalhar entre as classes mais pobres seriam muito maiores, o que deu início nos meses seguintes a um plano de prevenção com apoio das forças armadas que, mais tarde, revelou-se uma medida de isolamento e intervenção militar severa nas áreas mais carentes, principalmente nas favelas. Diversas foram as manifestações e conflitos, muitos seguidos de morte. Mas o mito de uma "doença de classe baixa" caiu por terra quando uma socialite, esposa de um embaixador, organizou um badaladíssimo coquetel na cobertura de um luxuoso hotel à beira-mar na noite de ano-novo e aproveitou para utilizar explosivos de verdade em vez de fogos de artifício.

Hoje, cinco anos após o primeiro caso, vivemos isolados, presos em abrigos subterrâneos que aprendemos a chamar de casa. Apesar da paranoia que se instalou na população, felizmente Pandora só era transmissível através do contato direto, fosse por tato ou via oral. O que nos forçou a ser mais autossuficientes. Por exemplo, aqui em casa, adaptei um espaço para uma minifazenda hidropônica onde cultivamos nossos próprios legumes.

Curiosamente, a internet sobreviveu, tornando-se uma ferramenta poderosa de troca de informações, pois um traço marcante entre os infectados por Pandora era o exibicionismo. Todos queriam ter os seus cinco minutos de fama, eternizando os seus feitos nas redes sociais. Fora isso, era uma maneira de os governos identificarem o problema e tentarem erradicar um possível foco da doença. A qualquer momento você podia baixar informações sobre os sintomas e as medidas de prevenção.

Meu trabalho é reenviar esses boletins de informações do Ministério da Saúde às pessoas, querendo elas ou não. Um spammer, por assim dizer. Não é o trabalho mais glamoroso do mundo, mas me rende uma grana decente e me ajudou a conseguir uma casa melhor.

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