Capítulo 3 - Farejando os fatos: O resgate da intuição como iniciação

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A boneca no bolso: Vasalisa, a sabida

A intuição é o tesouro da psique da mulher. Ela é como um instrumento de adivinhação, como um cristal através do qual se pode ver com uma visão interior excepcional. Ela é como uma velha sábia que está sempre com você, que lhe diz exatamente qual é o problema, que lhe diz exatamente se você deve virar à esquerda ou à direita. Ela é uma forma de velha La Que Sabe, Daquela Que Sabe, da Mulher Selvagem.

As contadoras de histórias dedicadas estão sempre longe, aos pés de algum morro, afundadas até os joelhos na poeira das histórias, retirando séculos de sujeira, escavando camadas de culturas e de conquistas, classificando cada friso e cada afresco de história que possam encontrar. Às vezes a história foi reduzida a pó, às vezes porções e detalhes estão faltando ou foram perdidos; com  frequência, a forma está intacta mas o espírito está destruído. Mesmo assim, toda escavação traz em si a esperança de se encontrar uma história inteira, intacta. A história que se segue é exatamente um incrível tesouro desses.

O antigo conto russo de "Vasalisa"1 é a história praticamente intacta da iniciação de uma mulher. Ele trata da percepção de que a maioria das coisas não é o que parece. Como mulheres, recorremos à nossa intuição e aos nossos instintos para farejar tudo. Usamos nossos sentidos para espremer a verdade das coisas, para extrair o alimento das ideias, para ver o que há para ser visto, para conhecer o que há para ser conhecido, para ser as guardiãs do fogo criativo e para ter uma compreensão íntima dos ciclos de vida-morte-vida de toda a natureza — assim é uma mulher iniciada.

A história de Vasalisa é contada na Rússia, na Romênia, na lugoslávia, na Polônia e em todos os países bálticos. Ela às vezes é intitulada "A boneca"; às vezes, "Wassilissa, a sabida". Encontramos indícios de suas raízes arquetípicas até pelo menos o tempo dos cultos das antigas deusas-cavalo que antecederam a cultura grega clássica. É um conto que traz um mapeamento psíquico antiquíssimo acerca daindução no mundo subterrâneo do selvagem Deus-fêmea. Ele fala de como infundir nas mulheres o poder instintivo básico da Mulher Selvagem: a intuição.

Essa história me foi passada por tia Kathé. Ela começa com um dos mais antigos truques conhecidos dos contadores de histórias: "Era uma vez, e não era uma vez..."2 Essa frase paradoxal tem a intenção de alertar a alma do ouvinte para o fato de a história ter lugar no mundo entre os mundos, onde nada é o que parece ser à primeira vista. Comecemos, portanto.

XX Vasalisa XX

Era uma vez, e não era uma vez, uma jovem mãe que jazia no seu leito de morte, com o rosto pálido como as rosas brancas de cera na sacristia da igreja dali de perto. Sua filhinha e seu marido estavam sentados aos pés da sua velha cama de madeira e oravam para que Deus a conduzisse em segurança até o outro mundo.

A mãe moribunda chamou Vasalisa, e a criança de botas vermelhas e avental branco ajoelhou-se ao lado da mãe.

— Essa boneca é para você, meu amor — sussurrou a mãe, e da coberta felpuda ela tirou uma bonequinha minúscula que, como a própria Vasalisa, usava botas vermelhas, avental branco, saia preta e colete todo bordado com linha colorida. — Estas são as minhas últimas palavras, querida — disse a mãe. — Se você se perder ou precisar de ajuda, pergunte à boneca o que fazer. Você receberá ajuda. Guarde sempre a boneca. Não fale a ninguém sobre ela. Dê-lhe de comer quando ela estiver com fome. Essa é a minha promessa de mãe para você, minha bênção, querida. — E, com essas palavras, a respiração da mãe mergulhou nas profundezas do seu corpo, onde recolheu sua alma, e saiu correndo pelo lábios; e a mãe morreu.

A criança e o pai choraram sua morte muito tempo. No entanto, como o campo arrasado pela guerra, a vida do pai voltou a verdejar por entre os sulcos e ele desposou uma viúva com duas filhas. Embora a nova madrasta e suas filhas fossem gentis e sorrissem como damas, havia algo de corrosivo por trás dos sorrisos que opai de Vasalisa não percebia.

Mulheres que correm com os lobos.Onde histórias criam vida. Descubra agora