[Doce Bergitte]

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Um dos primeiros resultados que aparece em português sobre o vilarejo de Åsebakken é uma notícia sobre um convento católico no município de Birkerod, no norte da Dinamarca. É tudo que Annika consegue obter em cinco horas e meia de viagem, com uma internet não muito boa e um motorista de ônibus calado. Mas o que me sussurram em sonho, ah, isso é outra coisa.

***
Annika

A morte de seu pai sempre será uma notícia chocante, acredito eu. Para seus três filhos, agora órfãos, é mais do que chocante. É doloroso. Inacreditável. Impossível de acontecer, impossível de não se culpar o biltre que assaltou meu pai em uma cidade tão pequena quanto Campos do Jordão, e atirou em seu peito quando este reagiu. É quando você começa a se questionar onde está sua mãe, e o por quê da ausência latente de uma esposa para o senhor Winther.

E então, após uma tia e alguns parentes terem direcionado a mim e aos meus irmãos para um avião rumo à Dinamarca, sem responderem nenhuma de nossas perguntas e nos privando de comparecer à cremação do corpo de papai, não há mais lágrimas em meus olhos.

"Eu sou a mais velha. Soren e Bergitte ficam comigo, não importa o que acontecer." — penso, olhando para a última parte de meu pai que carrego, seu relógio de pulso. Dourado envelhecido e grande demais para mim, com entalhes em alguma língua nórdica, esse relógio nunca era visto fora do pulso esquerdo do chef Winther, salvo as horas em que ele ia trabalhar em seu restaurante e o deixava aos meus encargos.

Quando o avião pousa em Copenhague, uma aeromoça solícita demais para o meu gosto nos guia até um ônibus, dando instruções específicas ao condutor em um dinamarquês fluente e rápido. Ela sorri ainda mais quando vê minha expressão desconfiada, abraçando Soren pelos ombros estreitos. Ele é só um menino.

— Don't worry, little girl. Everything is going to be fine — "Não se preocupe, garotinha. Tudo vai ficar bem." É o que ela diz, puxando levemente uma das tranças de Bergitte, que arregala seus olhos nebulosos para a aeromoça de um jeito esquisito.

Hvor skal vi hen? — minha irmã pergunta de forma clara para o motorista do ônibus, o queixo apontado para o alto em desafio.

Åsebakken — replica ele, levantando as sobrancelhas grossas e castanhas em fingida indiferença; e lança uma olhadela à aeromoça, que se afasta rapidamente, com uma careta no rosto ao ouvir a pergunta feita por Bergitte.

— Gitte — sussurro, quando já nos acomodamos na última fileira de bancos do veículo — o que você perguntou para o motorista?

— Para onde nós íamos, ora — ela replica, ajeitando a franja bagunçada de Soren, que dorme em meu colo.

— E em que língua? Porque isso definitivamente não foi português. Agora você também fala, hm, dinamarquês?

— Não viaja, søster — Bergitte revira os olhos, cobrindo a boca logo em seguida ao perceber o que havia falado — O que eu falei?

— Dinamarquês, Gitte — sibilo, impedindo Soren de chupar o dedo durante o sono.

— Acho que não, deve ter sido só uma coincidência — ela acena com a mão — Todos estamos muito cansados, acho que vou dormir um pouco — diz minha irmã, se aconchegando em meu ombro.

Ela sempre foi forte, minha Bergitte. Ela quem defendia Soren na escola primária e devolvia o desprezo velado da sociedade conservadora na mesma moeda — que se perguntava onde minha mãe fora, porém, se considerava em um patamar elevado em demasia para perguntas como assim. Bergitte é a Winther mais forte, agora. Mas não é de ferro.

***

Uma bela cena, formam os três irmãos Winther lado a lado, espremidos em um banco de ônibus em algum ponto entre Copenhague e Åsebakken. É janeiro, e mesmo sendo três da tarde, o clima fechado parece imutável, com suas nuvens cinza chumbo.

Doce Bergitte (conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora