Capítulo Único

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Adeus,

Começo esta carta da mesma maneira que a vou acabar, com uma despedida. Pois aqui despeço-me de ti, meu querido amigo anónimo, e no fim é a mim a quem digo adeus.

Foste tu que me ouviste, lês-te neste caso, e eu agradeço-te do fundo do meu coração por isso. Desculpa ter-te incomodado durante todo este tempo, foi verdadeiramente frustrante pensar que te estaria a importunar com os meus problemas. Mas fico feliz por ter enviado aquela carta para o endereço errado, deve ter sido a única coisa não tão incorreta que eu fiz em toda a minha inútil existência.

Antes de passar ao assunto que me faz tomar esta importante decisão, eu gostaria de deixar alguns dos meus sonhos, também inúteis, se não te importares.

Quando era pequeno sonhava em ser bombeiro, típico de uma criança de cinco anos. Mais tarde esse sonho foi substituído, depois de ver constantemente um bailarino de rua eu sonhei que queria ser como ele e entreter as pessoas com a minha dança. Com a dança veio a música e o amor por ela, foi aí que pensei que algum dia poderia encantar as pessoas com a minha voz. Depois de começar a falar contigo, meu querido amigo anónimo, também se tornou um sonho conhecer-te. Mas nenhum destes sonhos é o meu destino.

Agora é noite para mim. E o que alguém inútil como eu pode fazer no seu decorrer? Dançar em palcos? Mover multidões? Ou escrever uma carta, pois é cobarde demais para a escrever quando alguém o pode ouvir a desmoronar?

O meu problema? Bem, não é nada de mais. Só um metro e oitenta centímetros de pura escuridão e dor. Ele é o meu problema. Ele provocou e eu fui atrás. Ele começou e eu vou acabar. Ele derrubou e eu vou desmoronar, por completo.

Nunca te contei sobre sobre todos os pormenores mas, meu único amigo, como ultima carta que irás receber deste endereço eu vou desabafar tudo, vou deitar tudo para o papel. Desculpa deixar-te com este peso.

A minha vida não foi de todo a melhor mas talvez eu mereci. Uma vida vã para um ser vão.

Tudo começou ainda na primária. Eu era o mais pequeno da sala e para piorar era gordinho também. Ele não era o mais inteligente da turma mas recebia muitos créditos da professora, ele era rico. Ele gozava comigo, eu era o seu brinquedo e quando se fartava de falar eram os seus punhos e pés que me relembravam o quão idiota era. Os meus pais nunca souberam o que se passava verdadeiramente. A única coisa que sabiam era que o filho não era bom em desportos e as aulas de educação física e jogos no recreio não eram a sua praia. Só repararam que algo não estava bem no último ano desse ciclo mas nunca houve provas e os outros alunos tinham medo de que se dissessem a verdade poderiam ser eles no meu lugar.

Depois de completar o primário fui para uma escola diferente. O meu azar? Ele estava lá. Os inúteis não têm sorte.

No primeiro dia de aulas na nova escola ele disse-me: "Tu és meu nem que o inferno congele". O inferno não congelou mas o meu corpo sim, cada vez que penso nele.

Estamos agora no secundário e a guerra é a mesma mas com mais participantes. Naquele ano o meu inferno passou a ter mais dois nomes.

O meu erro? Crescer e tentar confrontá-lo. O resultado? Cair acidentalmente de um lance de escadas e ficar algum tempo hospitalizado. De quem é a culpa? Inteiramente minha.

Ele perseguia-me, conseguia ver aquele seu brilho nos olhos até nos meus melhores sonhos. De dia ficava sempre a olhar por cima do ombro para ter a certeza que ele não estava atrás de mim e de noite não dormia a pensar em mil e uma maneiras de me esquivar dele no dia seguinte.

Não houve um dia que não tenha ficado com uma nova marca, não houve um dia que eu não desejei que ele finalmente me acerta-se com força suficiente para me matar, não houve um dia em que eu não chora-se e não houve um dia em que eu não fingi-se estar tudo bem quando chegava a casa.

Tudo aquilo que eu vivi, tudo aquilo que te contei. Não quero que carregues este peso então eu peço-te mil perdões por te escrever todas estas cartas. Mesmo sem obter respostas claras, eu ficava feliz cada vez que recebia um "tudo vai melhor", "o que interessa és tu e não os outros" ou "espero que corra bem" vindo de ti. Ao olhar as tuas simples cartas... eram nesses momentos que conseguia sorrir, de verdade.

Mas, também, quero que saibas que eu fui juntando as peças e eu sei que tiveste um passado semelhante. Obrigado... obrigado por me apoiares mesmo que tenhas revivido todos aqueles dolorosos momentos na tua mente. E perdoa-me por te fazer relembra-los.

Agora estás no inicio da tua fase de crescimento espiritual, invejo-te por conseguires tal coisa. Partilhamos o passado, mas espero que escolhas um futuro diferente.

Neste momento, eu sinto-me incapaz de pensar em alguma coisa para além daquilo que estou prestes a fazer. Não sei se irás receber esta carta ou se quando a receberes já tenha passado tanto tempo que a minha existência já se tenha apagado da memória de todos.

Eu não sei o que escrever mais. Talvez, nesta carta, eu não te tenha dito tudo aquilo que eu queria sobre a minha situação mas sinceramente eu penso que dá para perceber mesmo que não me prolongue mais.

Conhecer-te foi a melhor coisa que me aconteceu e por isso sou capaz de partir feliz, obrigado.

Adeus do Jimin,

Adeus Jimin

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