Parei de observar a chuva do lado de fora quando a porta foi aberta novamente, permitindo a entrada de um casal sorridente.Não perdi muito do meu tempo olhando para eles – a chuva do lado de fora estava bem mais atraente. Desviei meu olhar e voltei a encarar o vidro da janela.
Tina se aproximou com duas xícaras e as colocou sobre a mesa, antes de sentar sobre o braço da poltrona, uma posição estratégica para ficar na direção do espelho pendurado na parede da outra extremidade da cafeteria.
– Ainda não acredito, Sam – ela disse, sem tirar os olhos do espelho ou parar de tentar arrumar seu cabelo. – O seu pai está com algum problema? Namorar a professora Sílvia! Ele não encontrou nenhuma outra descendente de Hitler solteira?
– Não é nada disso, Tina – argumentei, sem me surpreender com a repentina revolta dela. – Isso está longe de ser um namoro. Eles só saíram algumas vezes. Certo, eu também acho completamente estranho meu pai estar saindo com nossa professora... mas o que eu posso fazer, afinal? E como ele parece estar se divertindo, decidi relevar. Fazia tempo que eu não o via assim. Ele mal saía de casa desde o acidente.
– É – ela conseguiu dizer com um suspiro. Havia um tom de ressentimento em sua voz. – Verdade mesmo.
Todo mundo tinha esse mesmo tom quando me ouvia falar do acidente assim, como se não me afetasse mais. A verdade é que eu jamais me esqueceria do acontecido. A falta dela ainda era uma dor absurda e eu não tinha esperanças de que algum dia aquele sentimento mudaria. Além de pensar nela todos os dias, eu não resistia e visitava a velha ponte no fim de cada mês, para me lembrar daquela noite.
Um ano tinha se passado e comecei a achar que estava na hora de cicatrizar essa ferida. Pelo menos a minha. Meu pai ainda sentia os sintomas. As noites sem dormir, a paranoia ao dirigir perto de um carro mais veloz e o constante medo de perder alguém de uma hora para outra. Eu passei por isso,claro. Assim como ele, eu estava lá. A diferença era que eu já tinha vontade de superar a dor.
– Felipe acaba de mandar uma mensagem, disse que já está chegando – avisou Erick, ao se aproximar de Tina.
Droga.
Fingi não ouvir a informação e deixei de observar a chuva do lado de fora para encarar a poltrona verde no fundo da cafeteria, ao lado de uma estante de xícaras. Bem ali, dois meses antes, Felipe arrancava o meu coração do peito e pisava sobre ele, da maneira mais cruel possível.
"Eu não te amo mais", ele disse.
Senti um aperto no peito, como se aquele momento estivesse acontecendo novamente. De fato, estava. Bastava fechar os olhos e eu era capaz de assistir a qualquer momento péssimo da minha vida. Era um dom cruel que Deus tinha me dado.
Olhei para baixo em seguida. Foi o único jeito que encontrei para disfarçar meu desconforto. Achei que Tina não tivesse percebido. Eu estava enganada.
– Samantha, posso saber no que está pensando?
– Nada – me fiz de desentendida. – Estava distraída. Só isso.
– Por favor, não me diga que está pensando nele.
Pensei por um momento antes de responder. Tomei coragem.E menti.
– Claro que não. Está tudo bem, Tina. Eu e Felipe somos amigos agora.
– Amigos? – Erick perguntou, caprichando no tom irônico.– Quando? Nas horas em que você o trata mal ou quando você o evita?
VOCÊ ESTÁ LENDO
Copas
General FictionSamantha ainda é apaixonada pelo ex-namorado, que mora em sua rua, estuda em sua escola e tem os mesmos amigos. Complicado? Fica muito pior com novos vizinhos que podem estar escondendo um assassino.