O astronauta Marcos Loureiro flutuou mais uma vez, dentre incontáveis outras, do módulo Zvezda da Estação Espacial Internacional para o módulo Cupola, dois dos poucos módulos que ainda resistiam sem muitas dificuldades após o fim das manutenções. Ele adorava observar a costumeira paisagem, os coloridos pontos, tão distantes quanto a imaginação era capaz de colocá-los. Naquele dia, seu milésimo centésimo segundo dia na Estação, observar a vista era uma questão muito mais existencialista do que um gosto pessoal. Ele necessitava ter aquele último momento observando o que julgava ser a mais bela vista do universo. Era seu último dia de vida.
Ele nunca esqueceu as famílias de seus parceiros astronautas, transtornadas, comunicando-se com eles nos monitores e tablets da Estação. A gripe estava matando todos e os governos do mundo estavam desesperados. Quando os poucos sobreviventes na Central de Comando da Terra falaram que todos os astronautas na Estação Espacial podiam retornar para o lar para estar ao lado de suas famílias no momento difícil, a nave foi preparada e todos se organizaram para o retorno. Marcos estava atrasado, decidira ficar para trás para fazer uns últimos ajustes, já que a Estação ficaria vazia, talvez para sempre. Ele ainda se lembrava da nave explodindo, tirando a vida de todos os outros, fruto do erro desesperado de alguém, talvez dele mesmo. O astronauta nunca se deu o trabalho de checar... O choque seguido da solidão já foram sofrimento suficiente. Ele não precisava de provas.
Os danos geraram complicações para a Estação e ele perdeu o contato com a Central alguns dias depois. Não sabia se fora algum dano irrecuperável ou se todos na base terrestre já haviam sido vítimas da gripe. Mesmo danificada, no entanto, a Estação sobrevivera durante muito mais tempo do que ele tinha inicialmente previsto. Não entendia muito bem por que ainda se dava o trabalho de reparar tudo que podia. Talvez fosse a força do hábito, o senso de dever ou a falta de outras tarefas. Seu suicídio estava sendo adiado dia após dia, até Marcos se dar conta de que não precisaria tirar a própria vida. O oxigênio estava chegando ao fim e o estoque de alimentação também. Há sessenta dias ele declarara, em sua mente, uma competição entre o oxigênio e o estoque. Naquele dia, que ele já estava considerando seu último, teve certeza que o oxigênio seria o grande vencedor. Antes do que seria meia-noite no Brasil, ele estaria finalmente livre.
Antes da tragédia, Marcos gostava de fechar os olhos por cinco minutos a cada dez observando a Terra, a Lua ou as estrelas e galáxias distantes. Havia uma paz enorme naquele ato. Tranquilidade. Fazia sentir-se humano. Contudo, após a catástrofe, Marcos não conseguia mais seguir com o costume. Sua mente era sempre invadida por imagens do dia em que constatou que não havia mais luz na Terra. Era noite no Oriente e ele não viu sequer nada iluminado. A China estava completamente apagada e isso era suficiente para ele dar o planeta como finado.
E lá estava ele, flutuando na gravidade zero do módulo Cupola, mantendo os olhos bem abertos, imaginando se algum daqueles outros incontáveis pontos brilhantes possuiria vida. Abriu uma cópia antiga de "Os Dragões do Eden", de Carl Sagan, o único livro do físico que ainda não tinha terminado de ler. Uma lágrima ameaçou escorrer de seu rosto ao se dar conta de que não daria tempo de terminar. Ainda faltavam 205 páginas. Tudo bem. Ele leria o que fosse possível. Com sua visão periférica capturando a luz das estrelas, ele retomou a leitura.
Com menos de três páginas lidas, Marcos parou e se perguntou qual o sentido de adquirir um conhecimento novo se toda sua mente cessaria de existir em algumas horas. Aquilo era esperança? Ele achava que não, ela já não existia há muito tempo, contrariando o ditado que dizia que era a última. A esperança morrera logo depois dos outros astronautas. Marcos Loureiro seria o último. Ainda assim, tendo negado a existência da esperança, Marcos fechou o livro para tentar definir o que era aquilo. Qual o sentido de ler? Qual o sentido de qualquer coisa? Ele podia apostar que se descobrisse um parafuso solto no módulo, ele se daria o trabalho de apertá-lo. Por quê? Ele não estava passando o tempo para pegar um avião ou esperando sua esposa se arrumar. Quando se deu conta, percebeu que estava no corredor da morte, como um condenado que aguardava uma corda no pescoço ou uma descarga elétrica misericordiosa. O que condenados faziam em seus últimos dias? Ele sabia que costumavam receber bênçãos finais de um padre, mas nem isso ele tinha naquele momento. Talvez rezar fosse mais útil que ler na situação em que estava. Quem sabe algum deus não surgisse, vindo de uma daquelas esferas longínquas, e falasse: "olá, estou aqui".
Abriu o livro novamente.
A Terra escura passava pelo seu campo de visão, mas ele a ignorou. Depois que as luzes se apagaram, ele preferia observar os outros pontos mais distantes. A esfera azul estava morta, assim como a esperança. Assim como ele. Com tudo que ele sabia, ele era o único ser racional no universo. O restante fora detonado por um ser invisível, a porcaria de um vírus que se alastrou mais rápido que qualquer possibilidade de cura. Teria sido um ataque terrorista? Uma experiência que falhou? Por que isso importava? Marcos arremessou o livro, que seguiu uma trajetória retilínea pelo ambiente sem gravidade, bateu em um obstáculo e continuou levitando, suas páginas abertas com as palavras de Sagan, não se rendendo ao ataque de raiva do astronauta.
Marcos saiu do Cupola. A visão da Terra morta trazia tudo para ele, exceto paz. Voltou para o beliche onde dormia sempre e deitou-se, chorando, enquanto tentava não pensar em nada. Queria apenas pegar no sono e dormir eternamente. Já era possível sentir um pouco a falta do oxigênio. Estava com falta de ar, sua pele suava, mesmo no ambiente frio, e o sono que tanto desejava parecia chegar mais depressa. Era o corpo reagindo. Tentando diminuir suas atividades com a falta do gás da vida. Até ele! Até o corpo não notou que a esperança já estava falecida. Tentava resistir como se houvesse uma forma de sobreviver. Estava tudo tão errado. A rendição era muito mais fácil...
Marcos adormeceu. Sonhou pela última vez e, no sonho, algumas poucas luzes se acendiam na Terra.
Enquanto Os Dragões do Eden flutuavam diante de uma Terra apagada, um dos computadores, em um módulo há muito ignorado por Marcos, repetia incansavelmente uma mensagem de voz: "Aqui é o coronel João Martins, falando de uma central de comando improvisada na Terra. Há algum sobrevivente na Estação Espacial Internacional?". Já fazia vinte dias que a mensagem era executada ininterruptamente, sem ser notada.
O oxigênio acabou na Estação Espacial Internacional. Marcos partiu acreditando ser o último. Não foi. A esperança não estava morta afinal, apenas falhara em avisar o astronauta.
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O Último Dia
Science FictionO astronauta Marcos Loureiro é o último homem na Estação Espacial Internacional. Ele sabe que o resgate não virá. Tudo que resta a ele é refletir, passar o tempo e aguardar o seu último dia... Conto publicado originalmente no Escambau. http://www.es...