inspirada na música In The Wooods Somewhere do Hozier e no conto folclórico europeu "changeling".
1616
Ardendo.
Michael ardia.
Assim como ele ardeu; antes e agora.
A febre consumia cada fibra de seu ser, fazendo-o se arquear em agonia na cama de palha improvisada no chão sujo. Se o mundo houvesse permanecido justo e o rapaz estivesse agora na aldeia em que tinha se criado, sua mãe o traria uma chávena morna à boca e rapidamente ele se sentiria melhor — a dor diminuiria, a febre com certeza se esvairia em poucas horas. A mulher havia herdado da família os costumes e o conhecimento sobre ervas e substâncias medicinais que tratavam quase todos os males. Michael, quando puro e inocente, perdia as contas de quantas vidas a mãe conseguiria salvar apenas com uma tigela de alumínio e algumas folhas amargas.
Era quase um dom divino.
Todos os remédios do planeta, no entanto, não poderiam salvá-lo. Não existia cura para a doença do pecado, para a devoção cega. Ele aceitava aquilo de bom grado.
A pele pálida do menino parecia de borracha, pegajosa de suor e tão rente aos ossos que os exibiam, proeminentes e pontudos. Ele não fazia ideia de há quanto tempo estava sem ingerir um único grão de alimento ou beber água, mas não sentia seu estômago protestar de alguma forma; em meio as reações que seu corpo fervendo demonstrava, a fome e a sede pareciam ser o menos preocupante. O gosto de ferro quente que tinha na boca se alastrava por todo o paladar, o incapacitando de sentir qualquer outra coisa.
A cabeça castanha girava sobre a madeira seca, em delírio. A febre tirara toda sua capacidade de raciocinar, lançando-o no estado repetitivo e surreal de se lembrar apenas do motivo de estar ali, morrendo. De querer estar ali morrendo e desejar a morte como desejaria a cura.
— Luke — sussurrou a irrefletida voz débil e rouca, em meio a um suspiro, não pela primeira vez naquela noite.
A doença o pegara de surpresa. Estava saudável quando fugiu, se não contasse o coração rasgado em mil pedaços dentro do peito como um problema físico. Talvez houvesse sido os insetos peçonhentos ou algum espinho maledicente que o encontrara durante sua correria desabalada bosque adentro, tentando escapar da visão que o perseguia, mesmo sabendo que aquilo estava gravado em sua mente, no interior avermelhado de suas pálpebras. Michael só sentiu a dor antes, e não era diferente agora. Caiu enfermo, dois dias depois de encontrar a cabana abandonada e criar para si um refúgio do mundo — o lugar deveria ter sido a moradia dos antigos caçadores que viviam em meio ao matagal em busca de mercadoria, mas que há muito haviam partido. Abraçou a inconsciência como uma velha amiga. Poucos eram os momentos em que recuperava a razão o suficiente para tentar se salvar.
Mas ele podia ouvir os gritos de Luke em seus sonhos também.
A igreja era um dos únicos lugares onde podiam se encontrar, uma vez que os pais de Michael tinham-no proibido de ver o outro em qualquer circunstância e Luke não tinha mais permissão de estar em praticamente nenhum comércio ou praça da aldeia. Onde quer que Luke passasse, mães trocariam seus filhos de lado da calçada e cobririam seus olhos. Não olhem nos olhos do demônio, sussurravam. Homens empunhariam o facão mais firme, grunhindo de ódio e medo, e encaravam o caçula dos Clifford como se perguntassem se ainda era o mesmo: aquela amizade sem sentido só poderia ser fruto de algum feitiço do loiro, mas nunca chegavam muito perto para ter certeza.
Changeling era o nome que davam ao órfão trazido pelo padre da aldeia em uma de suas viagens, que o defendera com unhas e dentes por toda a vida. O termo designa o ser que se parece com um humano, mas que, na verdade, é uma prole maligna dos espíritos da natureza. Quando o padre partiu, deixou o pupilo a mercê das crenças da pequena população preconceituosa. Introspectivo, pagão, sem sobrenome, sem passado e com palavras tão articuladas e ideologias sombrias que logo fora rechaçado por todos, exceto um alguém.
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in the woods somewhere 》muke
FanfictionMichael amou Luke e está condenado por isso.