às vezes para se manter vivo você tem que matar sua mente.

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Ela era uma boa pessoa. Ingênua. Mas sabia sobre a vida. Acho até que sabia mais que nós, meros mortais. Ela tinha sonhos altos. Queria mudar o mundo. Queria que as coisas fossem mais fáceis.

— Fáceis pra quem? — perguntei certo dia. Ela me encarou como se eu fosse uma pessoa diferente de quem ela estava acostumada. Respirou fundo e murmurou.

— Para todos.

Quis argumentar. Dizer que nada seria tão fácil para todos. Que era impossível.

Mas eu a conhecia o suficiente para saber que nada que eu dissesse iria fazê-la mudar de ideia.

O segredo era que ela simplesmente vivia. Conhecia as pessoas. As deixava entrar.

— Esse é seu maior defeito. — eu disse e ela me encarou, furiosa. — Você deixa qualquer um participar da sua vida. Não é saudável. As pessoas são más.

— Posso saber o motivo de ser tão insensível com as pessoas?
Eu não respondi. Ela sabia o porquê.

Às vezes queria ser como ela.

Às vezes queria que ela colocasse os pés no chão. Ela vivia com a cabeça nas nuvens.

Eu a conhecia há muito tempo. Melhores amigas, como ela dizia.

E mesmo sendo melhor amiga dela, eu achava que não a conhecia direito. Ninguém a conhecia.

— Como você pode dizer isso? — ela riu quando sugeri que ela deveria ser um pouco mais transparente. — meus sentimentos são facilmente lidos no meu rosto. — ela balançou a cabeça e continuou a ler aquele livro. O maldito livro que ela não largava.

Ela estava certa, entretanto, era fácil ver quando ela estava feliz, brava, com nojo... mas eu não conseguia ver mais nada. Era uma tela em branco.

Ela era uma incógnita pra mim. Isso nunca me importou. Até achava charmoso ela ser tão misteriosa. Queria ser assim também.

Sabia muito sobre a vida dela, mas não sabia sobre ela. Sempre me perguntei o motivo de ela ser tão gentil. Metade de mim admirava isso, a outra metade ficava facilmente irritada quando ela se importava mais com as outras pessoas que com ela.

Uma noite de verão estávamos na sacada no apartamento dela, esperando o amanhecer – fazíamos isso às vezes – e ela disse, do nada:

— Eu acho que deveria me acostumar com esse mundo. Nunca vou conseguir mudar.

Eu estava prestes a concordar e dizer "sim, Melinda, acho que você deveria desistir do mundo, ele desistiu de todos nós primeiro", quando vi as lágrias em seus olhos. Eu apenas fiquei quieta e deixei que chorasse. Deixei que afundasse na tristeza dentro dela.

Não sabia a profundeza dessa tristeza. Não sabia o quanto uma pessoa poderia chorar. Ela não chorava muito, não era de demonstrar esse tipo de reação. Se estava triste, ela simplesmente virava as costas e ficava longe de qualquer pessoa. Eu não ligava, até preferia que ela escondesse toda essa tristeza, já era difícil lidar com a minha.

Depois daquela noite ela parecia outra pessoa. Andava com os ombros curvados, quase como se já tivesse desistido de tudo. Ou carregasse o peso daquele mundo morto nas costas.

Eu não disse nada. Ela não disse nada.

Melinda tentava mudar o mundo. Ao menos o mundo ao redor dela, o que ela tinha controle. Mas ela insistia que não era o suficiente. Ela tinha essa mania de querer fazer tudo certo e fazer as pessoas se preocuparem, se importarem.

— Elas não se importam, Mel. Por que você se importa? — eu perguntava, ela não respondia.

— Se eu não faço, ninguém mais faz. — ela desabafou certo dia, quando estávamos indo para o hospital. Ela queria doar sangue. Doei também. Não que eu quisesse, fiz por ela.

Às vezes achava que ela trazia o melhor de mim à tona. Ela se orgulharia se algum dia eu tivesse dito isso a ela. Mas eu não disse.

Esse mundo que ela tanto tentou mudar a sugou para um buraco sem fim. Um buraco fundo de tristeza e escuridão. Ela não conseguiu sair. Quem conseguiria? O mundo é maior que uma garota ingênua de dezessete anos.

sometimes to stay alive you gotta kill your mind.Onde histórias criam vida. Descubra agora