Vigília
Virou para o outro lado, encarando o tecido listrado do sofá, tentando lembrar porque estava de novo dormindo na sala. Não conseguia entender de onde vinha aquele anseio, aquela angústia esquisita, a dor nas costas que o médico sugeriu ser algo da sua cabeça. E agora, pela segunda vez, acordou na sala, vestida, as botas largadas no tapete, olhando no celular tentando imaginar quantas horas tinha perdido dessa vez.
Era como estar nadando. A frase latejou na mente por um segundo e mergulhou de volta.
A terra do jardim era fria nos pés, enquanto atravessava o quintal mal cuidado e abria o cadeado da edícula. A bateria coberta de pó e os pedestais de microfone encostados no canto a deixaram arrepiada. Não queria lembrar daquele passado. Olhou a parede branca, os ângulos manchados de umidade, e riscou a frase, sem pensar muito, com uma naturalidade que já não lembrava existir.
Era como estar nadando.
Botou na calçada a bateria e os pedestais. Deixou um bilhete na porta da geladeira, a chave do cadeado presa com fita adesiva, pedindo para a faxineira limpar a edícula. Vestiu o tailleur e a calça social, o scarpin. O salto alto fazia aquele barulhinho quando batia nos tacos de madeira da sala, um som que por motivo nenhum que pudesse lembrar a fazia pensar nos anos oitenta. Pegou a bolsa, clássica, escura e pesada. As chaves do carro penduradas no chaveiro em forma de gato preto, ao lado da porta. Olhou aquele gato tão fora de contexto na sala de tons sóbrios e linhas despojadas. Pensou em jogar o gato na calçada junto com a bateria, mas faltou coragem.
Marcou outra consulta. Outro médico, quem sabe aquele descobrisse o que estava errado. Aquilo não era parte dela. Aquele tremor nas mãos, aquele medo, aquela sensação de sufocação. Diante da tela do computador, tentou fixar a mente no trabalho e esqueceu quem era pelas dez horas seguintes, atendendo o telefone, mandando e-mails, preparando apresentações e resolvendo tudo com a meticulosa paciência que era sua marca. Ninguém diria que algo estava errado.
A última coisa de que lembrava era sair do salão com o cabelo retocado e entrar no carro, às oito. E agora estava deitada no sofá, usando uma camiseta velha e dormindo enrolada no edredom, o relógio marcando duas da manhã.
Faltou ao trabalho. O médico disse que os exames não diziam nada. Passou o dia no hospital, sendo picada, escaneada, questionada, desacreditada. Saiu de lá com uma dúzia de prescrições de remédios e sem respostas. Passou no posto de gasolina e voltou para casa com uma garrafa de vodka e nenhum remédio. No chão do quarto, viu a estampa da camiseta que tinha vestido naquele momento sem memória. Engoliu em seco, segurando a malha macia e com cheiro de guardado onde a imagem fazia suas lembranças gritarem.
Você pediu um presente.
Olhando as frases escritas na parede da edícula, pensou se não estava ficando maluca. Dúzias delas se amontoavam ali, e só lembrava de ter escrito três ou quatro. O espaço vazio e agora limpo só tinha uma almofada que tirou do maldito sofá listrado e levou até lá, a garrafa de vodka, e as frases que tomavam sua mente quando tentava se lembrar dos apagões. Ficou olhando a camiseta, a imagem do dragão de cinco cabeças coloridas saído do desenho animado devia ter sido pintada vinte anos antes, talvez um pouco mais. Podia jurar que tinha mandado a camiseta embora junto com todas as outras coisas. Podia ver uma manchinha de tinta escapando do contorno, uma falha nas escamas em algum lugar. Ele gostava de pintar as próprias camisetas.
Mordeu a articulação dos dedos. Fazia anos que não pensava nele. Era mais fácil, era mais confortável, ou simplesmente ela não se sentia forte o bastante para pensar naquilo. Reformou a casa enquanto estava estagiando no exterior, aproveitando a vantagem de ser uma jovem bem sucedida em uma área com pouca gente especializada. Não queria ver a aparência da antiga casa, não queria. Só sobrou o gato preto onde as chaves ficavam penduradas, porque ela nunca lembrava de comprar um novo, que combinasse com a sala.