Fim e recomeço

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Ele berrava porque era só o que sabia fazer. Alguma força primeva, mais velha do que esta história, sua história ou a Grande História do Tempo, o conduzia a agir assim. Gerações antes dele haviam procedido da mesma maneira. Talvez o primeiro dentre os seus houvesse se portado igual – e este sim devia ter inventado ou descoberto uma novidade. Mas o que se seguira a partir daí não passara de imitação, ou porque a originalidade se esgotara, ou porque a técnica era perfeita demais para sofrer mudanças. Sentia-se desconfortável, vazio por dentro, e berrar era o certo a fazer.

Um rosto familiar não tardou em assomar acima de si, com expressão agoniada, pois a moça partilhava de sua dor. A técnica nunca falhava. E enquanto seus berros se dissipavam num choramingo balbuciante, ele se notou erguer pelo embalo dela. Conhecia-a tão bem, embora não seu nome. Mas ela era dele, e ele era dela, e isso bastava.

Aproximou os lábios do bico rosado e se pôs a sugar. A textura lhe pareceu esquisita, seca e dura, no entanto naquele momento sugar era só o que sabia fazer. Sugava para preencher o vazio. Sugava mais por instinto do que por razão. O leite a sair matava sua fome.

Quando ela o devolveu ao berço, de relance ele percebeu a luz da tarde se infiltrando através das cortinas: o ambiente era fosco como em películas antigas, frágil como memória enterrada. Mal reparou quando ela iniciou aquela conversa ritmada e preguiçosa. O acalanto era bonito demais para ser desse mundo. Bem que ele tentou conversar de volta, mas desconhecia as palavras, apenas grunhia e babava. Então desistiu e ficou ali, quieto, só escutando, prestando atenção de olhos arregalados, sonhando acordado. Não se importaria se a cena congelasse e se transformasse em eternidade. E pouco a pouco a sonolência veio.

*****

Há um flash, não ofuscante como o de uma máquina fotográfica. O flash é negro, um lampejo de treva, mais lento e sólido do que um piscar de olhos. É como receber uma pancada na testa que não chega a nocautear, só atordoa e obscurece a vista por dez segundos.

*****

Ele suava, suava muito – mas era bom. A brisa soprava de quando em vez, secando-lhe o dorso molhado e pegajoso do sal marinho. O sol brilhava num céu tão azul como se de cetim, e era verão. Sobretudo, era o período de férias. E ele estava na praia com a mãe, o pai, os primos e a amiga. A energia quente agasalhava-lhe a pele, revigorava. A areia por entre os dedos de seus pés ardia, mas isso também era bom. Ele sorria como um idiota, tão dispersivo que não captou a bola arremessada em sua direção, nem sequer sentiu o impacto.

– Está fora, está fora! – gritou a voz da amiga. “Melissa.” – Você perdeu, eu ganhei, ganhei-ganhei! – e se engajou numa tola dança de vitória. Tudo bem: ela e ele eram crianças, e o prazer da infância exige essas tolices.

Ele apanhou a bola, espanou a areia da superfície e se virou para Melissa com um sorriso matreiro:

– Veremos quem perdeu, sua tonta!

Porém antes que lhe atirasse a bola, Melissa já disparara rumo à água, galopando numa nuvem de areia. Então ele se meteu a persegui-la, o olhar fixo no caminho sinuoso que ela descrevia a fugir. Ela entrou na beira do mar, espadanando areia lodosa e espuma, e ele a imitou logo em seguida. Não a deixaria escapar. Focava-se no alvo, ignorando a água a banhar-lhe os tornozelos, os respingos na face, a umidade no cabelo. Buscava uma posição adequada para mirar, uma linha reta e desimpedida, mas a beira-mar é quase um pântano para quem está correndo.

– Pare de fugir, sua covarde! Maricas-maricas!

– Sou uma menina, seu bobo! – ela replicou. – E você não é nenhum machão!

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⏰ Última atualização: Dec 05, 2013 ⏰

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