Destruição

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"Na natureza nada se cria,
nada se perde,
tudo se transforma".

Antoine Lavoisier

*

   Ele pairará entre apertar o botão vermelho ou não. Do muito que se discutirá sobre a finalidade daquele adereço, um tanto recentemente, encontrado, Luvius acreditará em uma: a destruição permanente do remanescente humano. Como alguém que busca a eliminação meticulosa de pequenos seres patológicos que se pegam atados ao ar que respiramos, aquele não tão velho homem de barba longa será seduzido pelo fato de nos extinguir.
Você pode até julgá-lo com o conhecimento prévio de alguém instruído a vida toda em um humanismo apaixonado;pode até chamá-lo de misantropo e cruel e sempre virar o rosto quando se verem; pode achar que tudo é fruto de uma frieza cômica brotada de uma chateação flamejante. Mas, não. Por favor, não erre em seus pensamentos apressados.  Luvius desejará provocar o Fim dos fins do Homem porque acreditará que esse é o porquê de estarem ali.
 Será o ano de 2325 e será um desses fins de quem acha que manda num planeta encontra. Sairão do que haverá restado da Terra consumida por seus desastres naturais e um novo inseto que virá disso e que devorará a sanidade humana. LightHid, será chamado. Será o que se esconde na luz e que é fomentado pela claridade. Portanto,a humanidade tentará viver no escuro para agarrar algum fio escorregadio de sobrevivência, já que a iluminação alimentará as chances de ser morto.Tragicômico: a morte que se espreitará e nos alcançará através da luz; uma insanidade causada por um ser que habita no claro.
 Serão 300 pessoas de um mundo todo que terá se desfeito. Todas naquela nave, a mesma de Luvius.    Todas se refugiando em direção a um sinal de rádio vindo de algum lugar obscuro que será traduzida depois de anos de estudo: "nós podemos ajudar". Porém até chegarem a esse significado compreendido por diversos tipos de linguistas, todo um país de cinco mil habitantes será diminuído ao número de mil. Desse mil, só trezentos embarcarão na novíssima arca de Noé.
  E os outros setecentos? Humanamente inaptos, humanamente destrutivos; infectados pelo vírus de loucura que neles ainda não haverá se manifestado.  Mas vai porque ele estará lá. Como sempre acontece no Homem: humanamente repetitivo, humanamente destrutivo. Destruição.
  Uma micro-sociedade se formará e Luvius será um dos proeminentes líderes. Com as costas curvas e olhar de pomba tímida espalhará para todos a sua descoberta de um botão num painel que trazia um título com o peso de mil silêncios e mil sirenes: "autodestruição".
  O objeto, um tanto, maldito por toda a perturbação que causará, não estará nos manuais, nem em instruções prévias,como a vestimenta uniforme para evitar a necrose da desigualdade, nascendo o castigo de diferenças entre classes. Não, não será ensinado e ninguém será  treinado para isso. Será uma surpresa inconveniente; um lampejo claríssimo e irritante com vozes sussurrantes. Autodestruição do que? Para quê? Por quê?
  Conversas a respeito serão feitas abaixo ouvido e olhares medrosos nos refeitórios e praças interiores até que Luvius tome coragem e cogite em público pela primeira vez: "talvez seja paranos destruir, caso fiquemos doentes". Um debate se originará e Luvius,solitário, investigará tal questão mais a fundo. Logo reunirá discípulos em torno de si. Juntos apreenderão que não deverá ser a doença causada pelo LightHid que deve ser o motivo de sua autodestruição. "Não acho que podemos ficar doentes de algo que só tem na Terra", Karia a mal humorada e de humores íngremes, dirá enquanto cruza os braços em dureza. Ela,  com o seu olhar frio e soco de sempre, fará uma observação madre de tudo o que nascerá depois dali. "E se o mal a ser destruído for a gente?", ela soltará com a sua voz de sonoridade contundente e secamente cinza enquanto prende o seu cabelo negro e ondulado, deixando umas mechas caírem sobre a sua pele amorenada. Depois disso então, naquela reunião fatídica onde Karia terá sido eureka, todos começarão a concordar e pensarem no quanto o ser humano pode ser ruim. E destrutivo. Destruição.
  Passarão dias e noites – se bem que será sempre noturno tempo em sua espaçonave - de uma semana, entendendo que o Homem não pode melhorar. Reverão arquivos sobre a Terra e o Homem que por lá passou alguns milênios. Serão esclarecidos da sua iniquidade perversa de esterilizar o próprio ventre; matar de esfomeado o próprio estômago; de dar a homicídio as árvores que lhe respiravam o ar; de magoar pra morte os oceanos que tanto se importavam com Ele; de julgar as gentes mil carne desprezível em holocaustos mil – não houve somente um, crê; de dar às criancinhas a chance de brincar a patriadas e órfãs, buscando sorriso sobre a terra rústica de um campo de refugiados, que mal sabem que são pecinhas de um jogo e quem está sorrindo e rindo são outros de bolsos mais gordos – a vida é cifra. Tanto mal no Homem. Muitos outros fatos quase infinitos de nossa malignidade farão cerco na mente do pessoal de Luvius. Então, convencidos começarão a se preparar para dar um fim redentor à Humanidade.Pouparemos quem quer que queira nos ajudar de nosso fator destrutivo. Sim, apertaremos botão e seremos perdoados pelo Universo e por Quem está por trás dele. Sim, apertaremos o botão. Destruição.
  Viver é um atrito constante. Tudo quer que você morra e você tem que lutar contra isso. Contra os vírus, órgãos que se desfalecem, células que se multiplicam famintas, o carro que cruza a rua no sinal vermelho, a curva aguda na estrada, humanos irmãos que se crescem de inimizade ao seu redor. E claro, por isso, para os Luviusianos existirem,deverá nascer uma resistência. Eles aumentam de número e o seu líder não anda mais tímido, mas, sim de ossos duros como bandeiras e tendas orgulhosas e firmes erguidas sobre um campo inimigo dominado. Porém, um outro grupo nasce.Claro. Lúcido fato. Pra que algo possa existir, algo deve querer a sua morte.Típico. Destruição.
  Os Alicianos começarão a se espargir na sociedade da nave. Os seguidores de Alice. O uniforme cinza terá um certo contraste embelezador com  a sua pele negra. De atitude sempre prestativa, trabalhadora e compassiva, ela sempre terá sido uma crente no melhor do Homem e isso a terá feito, de certa forma, melhor.Ela se recusará fielmente de descrer do Homem de tal forma.  Ajuntará ao seu redor quem não vai permitir o Fim dos fins.
  Será necessário muita resiliência para que não se matem uns aos outros. Até alguns dos Alicianos humanistas de base quererão assassinar uns Luviusianos. Mas seguirão a liberdade consciente de Kant: só se é livre quando se é maior do que os seus instintos; quando se destrói a si mesmo para não destruir pessoa alguma. Destruição.
  Os Alicianos tentarão mostrar o bem do Homem com tudo o que puderem. "Sejam bons com os Luviusianos até quando não quiserem ser", Alice ensinará.
  Haverá esse tipo de equilíbrio de forças até o dia do vídeo. Quem quer que seja que terá projetado a questão do botão da autodestruição terá sido de essência maquiavélica – o meio para os fins.

  * 

  Num sábado de manhã –acreditarão ser manhã – um alarme soará. Serão convocados para a praça principal de árvores poucas, quase só ilustrativas. "O botão de autodestruição deve ter causado a vocês grande desconforto", começará o rosto masculino e geométrico que aparecerá na tela. "Devem estar com as opiniões divididas.Normal. Coisa humanamente normal. Eis a sua função: poupar o Universo de nós mesmos. Agora vocês decidem. Nós aqui debaixo não podemos fazer nada. Estamos condenados à morte feita pelas mãos dos assassinos infectados pelo LightHid ou pelas mãos da própria natureza. Sejam sábios e decidam o futuro de vocês e de muitos".
  Depois do vídeo terminar, um não-palavras pegará o ambiente pelos cabelos e o asfixiará. Espanto. Os Alicianos mal poderão acreditar. Os Luviusianos festejarão após alguns minutos de silêncio diplomático – embora diplomacia não será o forte deles. Estamos certos! Estamos certos!
  Alice conterá uma represa ressentida nos olhos que beira à explosão. Não. Não. Não. Alegres por estarem certos mesmo que isso os destrua. Até posso compreender um pouco o porquê da validade de sermos destruídos. Agora até faz sentido. Mas não. Não. Não.
  Os outros Alicianos começarão a se converter ao Luviusianismo. Decepcionados com o ser humano ou convencidos mesmo de sua indignidade inata.
  Chegará o dia do botão. A data em que Luvius estará diante do botão tendo um pequeno e inesperado receio. Devo fazer isso ou não? Os olhos centenas que o cercarão – até mesmo os restantes dos Alicianos que terão se rendido e quererão assistir o fim de sua raça – o cobram alguma decisão mas ao mesmo tempo temem a sua rapidez. Na verdade, ninguém gosta de morrer, mesmo que as suas cinzas valham para alguma coisa; mesmo que delas brote alguma flor, o Homem quer ser o jardim e o jardineiro. Morrer não é suficiente. Ironicamente, nem tanto viver.Destruição.
  Uma gota de suor escorrerá da testa de Luvius. O homem que se cresceu tanto em autoridade e liderança nos últimos dias. Alice deixará a represa explodir as barragens de seus olhos enquanto assiste em seu canto com a mão no coração como alguém pede perdão à Vida por traí-la – ainda mais em grupo. Perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem.
   Luvius respirará fundo e dará um último sorriso ao seus companheiros. O Homem quer sempre se ligar ao outro. Até na hora de destruírem uns aos outros. Belo cortante.
  Um, dois e três. Ele apertará o botão na velocidade de um piscar de olhos.

AAAARGH! Luvius soltará um grito visceral e cairá ao chão convulsionando. Todos correrão para ajudá-lo. Um áudio masculino tocará na nave inteira:

- Reprovado. Aquele que consegue se convencer e escolhe destruir o Humano deve ser destruído.

Uma esperança nascerá verde nos olhos de Alice. A voz continuará:

- Que isso não se repita. Nunca mais. Destruam a Destruição. Matem todos os que foram a favor da autodestruição.

A esperança, por isso, adormecerá bêbada e angustiada no olhar de Alice. Não.Não. Não!

*

  Não demorará muito pra matança começar. Lutarão uns contra os outros ferozes. Morrerão homens, mulheres e crianças. Os que terão matado aos seus inimigos,sorrirão com a sobrevivência. Até que flechas sejam disparadas das paredes encravando em seus peitos. E mais um áudio:

- Aquele que se convence e escolhe matar um outro humano deve ser destruído.Que isso nunca mais se repita. Boa viagem.

  Alice acordará morta em torpor. Ela e os poucos que não terão matado pessoa alguma decidirão limpar os espaços e fazer um sepultamento digno aos corpos. Quietos, só som de trabalho, remoendo em si a ira contra o humanamente destrutivo tão sempre presente em tudo. Mas a destruição nem sempre é ruim. Isso será o que um menininho de oito anos de idade, sujo como sangue dos pais assassinados na batalha tosca, resmungará descalço ao imaginar a Terra explodindo. Alice sentirá algo parecido.

  Dias depois se reunirão e ligarão para a Terra. Depois de atendidos, Alice se pronunciará:

- Aquele que destrói deve ser destruído. Que isso nunca mais se repita! Boa viagem.

  Ela desconectará os cabos de comunicação com a Terra. "E agora?", perguntarão para ela.
Embriagada pela possibilidade do futuro e com o olhar distante mas de contentamento dirá:

- Destruir tudo o que é destrutivo em nós enquanto chegamos em nossa nova casa.Boa viagem para nós.

  E a nave seguirá no Universo vasto que, enfim, nos terá perdoado.

  Destruição.

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