Vai melhorar

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Já passava das três da manhã quando Bia saiu de baixo das cobertas e foi para o seu quarto. Na TV, um filme sobre um casal se esforçando para engravidar (espera, aquele não é o Dr. House?) lhe fez companhia até que adormecesse. No outro quarto da casa seu pai encarava o teto e apertava os dedos em silêncio, exausto demais para conseguir voltar a chorar. Pelo menos não precisava mais fingir que tinha caído no sono.

Miguel sempre foi uma pessoa reservada e tímida, na defensiva mesmo, do tipo que precisa de muito tempo de convivência para conseguir se sentir à vontade na presença de alguém. A única exceção era a filha e tinha sido assim desde a primeira vez em que a viu, doze anos atrás, quando foi até um abrigo levar os presentes de Natal arrecadados pela empresa onde trabalhava. A risada aguda e soluçada da garotinha descabelada que corria de um lado para outro encantou seu coração. Ele nunca tinha pensado em ter filhos, mas ao ver o sorriso de dentinhos tortos de Bia não pode fazer nada além de se render: ela era sua filha, sempre tinha sido e sempre seria.

Depois de achar, com a ajuda da lanterna do celular, quase dez rostos de celebridades na mancha de infiltração que ficava num dos cantos do teto, Miguel chegou à conclusão de que enlouqueceria se ficasse mais tempo naquela casa, naquele quarto cheio de lembranças. Acendeu a luminária ao lado da cama e foi até o banheiro. Suas olheiras estavam bem mais marcadas do que de costume, mas estava tão focado em abrir o armarinho de remédios que não teve tempo de encontrar seu reflexo no espelho. Os frascos e cartelas estavam todos ali e não demorou muito até que achasse o que procurava.

Quando Miguel contou a Bia sobre a adoção, recebeu um olhar desconfiado ao invés do abraço que esperava. Ela já tinha se conformado com a ideia de estar ficando velha demais para ser escolhida por alguma família e, apesar de gostar muito daquele rapaz que, durante um ano inteiro, não passou uma única semana sem visitá-la, aquilo parecia bom demais para ser verdade. Mesmo depois de devidamente instalada na casa do novo pai, ainda foram precisos alguns meses até a garota deixar de guardar suas roupinhas dentro da mochila que trouxe do orfanato. O agradecimento por ter ganhado o melhor pai do mundo, por outro lado, jamais deixou de fazer parte de suas orações.

O comprimido de Neosaldina desceu raspando, sem água mesmo. A cabeça ainda latejava. Foi até o quarto da filha e a viu dormindo com a televisão ligada, mas, dessa vez, apenas dessa vez, isso não o deixou irritado. Miguel hesitou por um momento. Ela já tinha passado a noite em claro ao seu lado, sabia que precisava descansar. Ainda assim, precisava tanto dela... Aproximou-se da cama e lhe alisou os cabelos, chamando seu nome em voz baixa. Assistiu em silêncio ela esfregar os olhos. Quando se certificou de que ela havia despertado por completo, disse-lhe que precisava sair para ver o mar, e que precisava que ela fosse junto.

A primeira vez que Bia foi à praia foi pouco tempo depois de se mudar para a casa de Miguel, quando repetiu de ano na escola. Não havia nada de surpreendente nisso, afinal ela tinha trocado, no meio do ano letivo, uma escola pública ruim por uma escola particular bastante exigente. Miguel tinha sido alertado pelos novos professores, no momento da matrícula, que isso poderia acontecer, mas resolveu não contar à filha para não desmotivá-la. Porém, quando entrou no quarto e a viu chorando, abraçada ao travesseiro, percebeu que a tentativa de poupá-la de aborrecimentos tinha sido bastante frustrada. Ele não tinha ideia do que dizer à filha, então decidiu levá-la para fazer o que ele sempre fazia quando se sentia mal: ver o mar. Pegaram a estrada no final da tarde e, graças ao horário de verão, chegaram ao litoral a tempo de ver o pôr do sol. Naquele dia, sentada na areia e tomando um picolé de morango, Bia aprendeu a primeira grande lição de vida de seu pai: nenhum sofrimento era imune à imensidão do céu e do mar.

Ela soube, pelo olhar que viu no rosto do pai, que era uma emergência, quase questão de vida ou morte. Era madrugada de uma quarta-feira e chovia muito. Num dia normal, ela teria pedido ao pai que se acalmasse, feito um chá e explicado que ele tinha prazos a cumprir no trabalho e ela provas finais na faculdade, então o melhor seria esperar até o final de semana, afinal o oceano não mudaria de lugar em três dias. Mas não era um dia normal, ela nunca o vira naquele estado. E, por isso, ela só assentiu e se levantou. Beijou o rosto de Miguel e ainda fez dois cafés para que tomassem antes de sair. Bia assumiu a direção sem nenhuma objeção por parte do pai, o que só comprovou o fato de se tratar de uma situação absolutamente extraordinária. Nenhum deles sabia o que falar durante a viagem, e de fato não havia nada que pudesse ser dito. Miguel colocou para tocar um dos cds que ela deixava no carro, uma coletânea de músicas do Queen, fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Na estrada já não chovia e o sol ia aos poucos aparecendo, então Bia não teve nenhuma dificuldade no caminho. Chegou a formular uma lista de mais de quinze motivos pelos quais Caio era um idiota por ter feito o que fez, mas no fundo sabia que não era daquilo que o pai precisava. O rádio tocava "Killer Queen" e ela só conseguia se culpar por não ter um jeito de fazer com que a dor que ele estava sentindo parasse.

Miguel sempre conversou muito com a filha, sobre tudo. Até questões sobre o primeiro sutiã e a primeira menstruação ele tirou de letra. Só tinha dificuldade em falar de seus relacionamentos amorosos para a menina. Ele tinha muito medo de que a filha se apegasse a alguém que não fosse fazer parte de suas vidas por muito tempo. Paixões arrebatadoras nunca foram o seu forte e, justamente por isso, era muito difícil que ele passasse mais de dois meses com o mesmo rapaz. Em mais de dez anos morando juntos, Bia só chegou a conhecer dois de seus namorados. O último foi Caio. Meia idade, já um pouco grisalho, muito inteligente e crítico na seção de cultura do jornal em que Miguel escrevia sobre economia. Ficaram juntos por três anos. Teriam ficado juntos por muito mais tempo, se Miguel não tivesse descoberto que Caio mantinha um caso com um estagiário do jornal.

Miguel só abriu os olhos de novo quando Bia parou o carro. Ela sorriu para ele e os dois foram até a areia. Sentaram-se, de pijama mesmo, a poucos metros da água. Ele apoiou a cabeça no ombro da filha e começou a chorar. Ela afagou seus cabelos em silêncio, pensando em como costumava imaginar o dia, no futuro, em que teria que cuidar do pai velhinho. Não esperava que fosse vê-lo tão vulnerável e frágil tão cedo. Se pudesse, teria trocado de papel com ele sem pensar duas vezes. Ela já tinha sofrido suas desilusões amorosas, já tinham deixado seu coração tão partido que achou que nunca mais fosse se sentir bem de novo. Mas a impotência de ver a pessoa que sempre foi sua referência de força e determinação sofrendo daquele jeito, sem poder fazer nada para ajudar, era mil vezes pior do que qualquer término de namoro jamais seria. Queria deixar claro que estaria ali, sempre ao lado dele, para protegê-lo do mesmo jeito que ele fez todas as vezes em que alguém tentou diminuí-la. Queria poder pegá-lo no colo, cantar num inglês desafinado alguma música brega dos anos 70 ou 80 que falasse sobre dias melhores, como ele tinha feito tantas vezes por ela. Queria não ter aquele nó na garganta, aquelas lágrimas escapando dos olhos. Queria poder fazer mais, mas no momento o melhor que conseguiu foi abraçá-lo com força. Por instinto, queria que ele pudesse consolá-la. Mas não era assim que as coisas funcionariam, não naquele momento.
Miguel apertou a filha o máximo que pode. Em sua cabeça, que ainda latejava, perguntava-se por quanto tempo aquilo doeria. Não fazia nem 24 horas desde que todo aquele inferno começara, desde que confrontara Caio por causa das mensagens de celular que tinha descoberto, desde que gritara para que ele sumisse de sua vida. Sentia o peito queimar por dentro e o corpo afundar num abismo. Mas Bia estava lá. E era sua missão ser o porto seguro dela. Durante muito tempo, esforçou-se para ser inabalável, pronto para enfrentar o que fosse necessário para garantir a felicidade da filha. Evitara, durante anos, que ela o visse triste, chateado. Uma parte dele se sentia fracassada por não ter aguentado a barra, por ter se mostrado fraco. Mas tudo tinha mudado. Ela já era uma mulher feita, agora. Não precisava mais da sua ajuda para abrir vidros de azeitona ou lidar com a crueldade do mundo, tinha aprendido a se virar sozinha. E agora era como se os papéis tivessem se invertido. Ele sabia que, se Bia não estivesse ao seu lado, teria feito alguma besteira contra Caio ou contra si mesmo. Ela tinha se tornado o seu porto seguro, era ela quem estava tomando conta dele. E, por mais que quisesse se sentir incomodado com essa mudança na ordem das coisas, no fundo só conseguia se sentir grato. Sabia que ainda sofreria muito, que passaria muitas noites em claro, que choraria o suficiente para encher três oceanos. Ainda amava Caio e não seria fácil superar a decepção, a dor. Mas, enquanto tivesse o colo da filha, sabia que tudo ficaria bem de novo, mais cedo ou mais tarde.

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