A água enchia aos poucos uma peneira grande demais para mãos tão pequenas. Ela refletiu por um breve momento o rosto de uma menina que rezava em voz baixa. Ela pedia aos deuses que a abençoassem com qualquer coisa que pudesse valer algum dinheiro. Arya, em seus dez anos, só desejava não morrer de fome como sua irmã menor há duas luas, ou como sua mãe que morreu de tristeza pouco depois da filha. Restaram somente ela e seu pai, tão magro e curvado quanto ela trabalhando no leito do rio. Trajavam trapos e tremiam de frio junto a dezenas de outros escravos como eles.
Como um ritual, os dois afundavam e arrastavam suas peneiras submersas no solo arenoso ao som de pequenas cascatas, orando por misericórdia baixo o bastante para não correrem o risco de serem açoitados. Assim era com todos os moradores daquele pequeno vilarejo no meio da grande floresta, dominada por soldados do rei e maculada pela extração de madeira e pedras preciosas. Alguns soldados matavam o tempo rindo enquanto os chicoteavam por qualquer motivo, ordenando que se apressassem ou seriam expulsos das muralhas, ficando à mercê de ser devorados por orcs ou dragões.
Mas o mundo nem sempre foi assim. O pai de Arya lhe contou que, há cem anos, o mundo se dividiu entre aqueles que podiam usar magia e os que não podiam. As pessoas do segundo grupo foram transformadas em escravos como eles. Os poderosos magos diziam que era a vontade de Varhalen, a deusa-mãe de todos os deuses e todas as coisas. Unidos com seus poderes e crueldades construíram muralhas, castelos, dominaram os terríveis orcs e assim tomaram Mihandr, sua preciosa terra.
Agora, pessoas como Arya tinham que trabalhar arduamente para encontrar os Cristais-Estrela, joias raras encontradas somente naquela floresta e que auxiliavam os usuários de magia. Para pessoas humildes como eles, as belas joias ou as pepitas de ouro serviam como troca por comida. Segurança, paz, esperança e alegria eram coisas que eles pouco conheciam. O que viviam era a fome, a desgraça e a violência, tudo porque aqueles que eram capazes de usar magia decidiram que eram melhores do que qualquer um; talvez até mesmo os deuses. Assim Arya vivia cada dia trabalhando arduamente e orando para que sua peneira conseguisse capturar algo de valor.
Noites se passaram rastejando de seus barracos até o rio em que trabalhavam, mas Arya e seu pai nada conseguiram. As dívidas cresciam e o estômago de Arya parecia que iria devorar a si mesmo. Um vizinho, com pena da pobre família, dividiu com eles o ganho de uma pepita. Por uma noite ela pôde comer pão e ovo com seu pai e sorrir por alguns instantes. Infelizmente, aquela foi sua última noite sorrindo juntos: uma doença atingiu seu pai em poucos dias. Diziam que era por culpa das terras reviradas e o rio contaminado. Outros escravos clamaram por ajuda, que algum dos magos pudesse vir por misericórdia. Foi tudo em vão e a pequena menina se viu órfã e faminta na semana seguinte.
Não culpou outros moradores por não a ajudarem a enterrar seu velho pai, temendo se contaminarem. Não culpou os que não lhe deram nem um pedaço de pão; eles mal tinham para eles. Quantas vezes viu a mesma cena? Quantas amizades viu morrer de fome e rostos vendidos para ter apenas uma refeição? Pessoas desintegradas pelos poderes dos magos porque não conseguiam pagar suas dívidas com os senhores? Ao menos quem enriquecia podia "comprar" os poderes. Arya começou a crer que os deuses não tinham piedade dos pobres.
Em uma noite trabalhando com sua peneirinha já furada, tonta pelo estômago que se retorcia, Arya orou. Orou e chorou com todas as forças que tinha. A fraqueza e a fome fizeram-na escorrer e cair em um ponto raso do rio, ralando os joelhos. Seus olhos se embasaram de lágrimas até que, de repente, sentiu algo parar entre seus dedos em meio a correnteza.
Era pesado para uma mão tão pequena. A luz da lua iluminou o artefato mesmo embaixo d'água. Arya piscou confusa ao tirá-lo da água até perceber que se tratava de um medalhão dourado. Não era um cristal-estrela nem uma pepita. Possuía inscrições estranhas, runas que ela nunca aprendeu a ler, afinal, escravos e não-mágicos não tinham direito à educação.
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A lenda de Arya
Fantasy*** Vencedor do 1º lugar no Concurso "Alta Fantasia com Super-Heróis" do Fantasia BR *** "Os deuses a escolheram para se tornar uma luz entre as trevas. As orações de seu povo foram ouvidas. Você é o veículo das estrelas." Dizem que os deuses deram...