Capítulo 1 sem título

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  1 - Negrinha - Monteiro LobatoNegrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, decabelos ruços e olhos assustados. Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantosescuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que apatroa não gostava de crianças. Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona domundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado nocéu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), alibordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Umavirtuosa senhora em suma — "dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião eda moral", dizia o reverendo.Ótima, a dona Inácia. Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúvasem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava ochoro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logonervosa:— Quem é a peste que está chorando aí?Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosaabafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendolheem caminho beliscões de desespero.— Cale a boca, diabo! No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio,desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfãaos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendiaa idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmoato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quasenão andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, aboa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.— Sentadinha aí, e bico, hein? Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.— Braços cruzados, já, diabo! Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógiobatia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seudivertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando asasas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha,diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta,sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidoscom que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava naberra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal queachou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que nãoteria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casatodos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para oscascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos emcujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos emsua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta... A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão,fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar obacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a brancoe qualquer coisinha: a polícia! "Qualquer coisinha": uma mucama assada ao forno porquese engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: "Como é ruim, a sinhá!"... O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana.Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mãofechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha:o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, osacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida doumbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos,pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para"doerfino" nada melhor!Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigomaior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim comaquela história do ovo quente. Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — umpedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou arevolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.— "Peste?" Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa. Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual peruachoca, a rufar as saias.— Traga um ovo. Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta,gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhoscontentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmulaalguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou: — Venha cá! Negrinha aproximou-se. — Abra a boca! Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com umacolher, tirou da água "pulando" o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro dedor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrousurdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo.Depois:— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste? E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário quechegava. — Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã,filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.— Sim, mas cansa... — Quem dá aos pobres empresta a Deus. A boa senhora suspirou resignadamente.— Inda é o que vale... Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas,pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas. Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como doisanjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos.Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferircontra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudomudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinhalevantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos. Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, enos ouvidos, o som cruel de todos os dias: "Já para o seu lugar, pestinha! Não seenxerga"? Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimentonovo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se nocantinho de sempre. — Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa. — Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha.Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, acasa é grande, brinquem por aí afora.— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, adolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco. Chegaram as malas e logo: — Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos. Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nuncaimaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinhade cabelos amarelos... que falava "mamã"... que dormia... Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nomedesse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial. — É feita?... — perguntou, extasiada. E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala aprovidenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovoquente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto,sem jeito, sem ânimo de pegá-la. As meninas admiraram-se daquilo. — Nunca viu boneca? — Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca? Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade. — Como é boba! — disseram. — E você como se chama? — Negrinha. As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinhaperdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca: — Pegue! Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Queventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, comoquem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relançosde olhos para a porta. Fora de si, literalmente.. . era como se penetrara no céu e os anjosa rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi oseu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, eesteve uns instantes assim, apreciando a cena.Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande aforça irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pelaprimeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se. Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça aimagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas depavor assomaram-lhe aos olhos. Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estaspalavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida: — Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein? Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viumais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha... Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha ena mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentosdivinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dosfilhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher. Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma.Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava,afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara deser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Sesentia! Se vibrava!Assim foi — e essa consciência a matou.Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou aoramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada. Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criadanova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão desusto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos. Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seudoloroso inferno, envenenara-a. Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda bonecaloura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizandosonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais,entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todaslouras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numafarândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada,rodopiada.Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, numdisco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de bocaaberta. Mas, imóvel, sem rufar as asas. Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas. Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha deterceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados... E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, namemória das meninas ricas. — "Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?" Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia. — "Como era boa para um cocre!..." 2 - BUGIO MOQUEADO - Monteiro Lobato— Uno!Ugarte...— Dos!Adriano...— Cinco...Vilabona...— ...Má colocação! Minha pule é a 32 e já de saída o azar me põe na frente Ugarte... Ugarte éfurão. Na quiniela anterior foi quem me estragou o jogo. Querem ver que também meestraga nesta?— Mucho, Adriano!Qual Adriano, qual nada! Não escorou o saque, e lá está Ugarte com um ponto já feito.Entra Genúa agora? Ah, é outro ponto seguro para Ugarte. Mas quem sabe se com umatorcida...— Mucho, Genúa!Raio de azar! — Genúa "malou" no saque. Entra agora Melchior... Este Melchior às vezesfaz o diabo. Bravos! Está agüentando... Isso, rijo! Uma cortadinha agora! Buena! Buena!Outra agora... Oh!... Deu na lata! Incrível...Se o leitor desconhece o jogo da pelota em cancha pública — Frontão da Boa-Vista, porexemplo, nada pescará desta gíria, que é na qual se entendem todos os aficionados quejogam em pules ou "torcem".Eu jogava, e portanto, falava e pensava assim. Mas como vi meu jogo perdido,desinteressei-me do que se passava na cancha e pus-me a ouvir a conversa de doissujeitos velhuscos, sentados à minha esquerda."... coisa que você nem acredita, dizia um deles. Mas é verdade pura. Fui testemunha, vi!Vi a mártir, branca que nem morta, diante do horrendo prato...""Horrendo prato?" Aproximei-me dos velhos um pouco mais e pus-me de ouvidos, alerta.— "Era longe a tal fazenda", continuou o homem. "Mas lá em Mato-Grosso tudo é longe.Cinco léguas é "ali", com a ponta do dedo. Este troco miúdo de quilômetros, que vocêsusam por cá, em Mato-Grosso não tem curso. E cada estirão!..."Mas fui ver o gado. Queria arredondar uma ponta para vender em Barretos, e quem metinha os novilhos nas condições requeridas, de idade e preço, era esse Coronel Teotônio,do Tremedal."Encontrei-o na mangueira, assistindo à domação dum potro — zaino, ainda me lembro...E, palavra d'honra! não me recordo de ter esbarrado nunca tipo mais impressionante.Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos, testa entiotada de rugas, ar de carrasco...Pensei comigo: Dez mortes no mínimo. Porque lá é assim. Não há soldados rasos. Todomundo traz galões... e aquele, ou muito me enganava ou tinha divisas de general."Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Aio Verde, um de "doze galões", que "resistiu" aotenente Galinha e, graças a esse benemérito "escumador de sertões", purga a esta horano tacho de Pedro Botelho os crimes cometidos."Mas, importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a São Gabriel.Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava a invernada de fora."Lá escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado."De volta do rodeio caía a tarde e eu, almoçado às oito da manhã e sem café depermeio até aquel'hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi que,apesar da repulsão inspirada pelo urutu humano, não lhe rejeitei o jantar oferecido."Era um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, malarejado, desagradável de aspectos e por isso mesmo toante na perfeição com a cara e os modos do proprietário. Traste que se não parece com o dono é roubado, diz muito bemo povo. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e abafada, rescendia aum cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do nariz — cheiro assim de carnemofada..."Sentamo-nos à mesa, eu e ele, sem que viva alma surgisse para fazer companhia. Ecomo de dentro não viesse nenhum rumor, conclui que o urutu morava sozinho — solteiroou viúvo. Interpela-lo? Nem por sombras. A secura e a má cara do facínora não davamazo à mínima expansão de familiaridade; e, ou fosse real ou efeito do ambiente, pareceumeele inda mais torvo em casa do que fora em pleno sol."Havia na mesa feijão, arroz e lombo, além dum misterioso prato coberto em que não sebuliu. Mas a fome é boa cozinheira. Apesar de engulhado pelo bafio a mofo, pus de ladoo nariz, achei tudo bom e entrei a comer por dois."Correram assim os minutos."Em dado momento o urutu, tomando a faca, bateu no prato três pancadas misteriosas.Chama a cozinheira, calculei eu. Esperou um bocado e, como não aparecesse ninguém,repetiu o apelo com certo frenesi. Atenderam-no desta vez. Abriu-se devagarinho umaporta e enquadrou-se nela um vulto branco de mulher."Sonâmbula?— Tive essa impressão. Sem pingo de sangue no rosto, sem fulgor nos olhos vidrados, cadavérica,dir-se-ia vinda do túmulo naquele momento. Aproximou-se, lenta, com passos deautômato, e sentou-se de cabeça baixa."Confesso que esfriei. A escuridão da alcova, o ar diabólico do urutu, aquela morta-vivamorre-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as carnes num calafriode pavor. Em campo aberto não sou medroso — ao sol, em luta franca, onde vale a facaou o 32. Mas escureceu? Entrou em cena o mistério? Ah! — bambeio de pernas e tremoque nem geléia! Foi assim naquele dia..."Mal se sentou a morta-viva, o marido, sorrindo, empurrou para o lado dela o pratomisterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um petisco preto, que não pudeidentificar. Ao vê-lo a mulher estremeceu, como horrorizada.— "Sirva-se!" disse o marido."Não sei porque, mas aquele convite revelava uma tal crueza que me cortou o coraçãocomo navalha de gelo. Pressenti um horror de tragédia, dessas horrorosas tragédiasfamiliares, vividas dentro de quatro paredes, sem que de fora ninguém nunca as suspeite.Desd'aí nunca ponho os olhos em certos casarões sombrios sem que os imagine povoadosde dramas horrendos. Falam-me de hienas. Conheço uma: o homem..."Como a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o convite em voz baixa, numtom cortante de ferocidade glacial.— "Sirva-se, faça o favor!" E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a gentilmenteno prato da mulher."Novas tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares erepuxos nervosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça, dilatou paramim as pupilas vítreas e ficou assim uns instantes, como à espera dum milagre impossível. Enaqueles olhos de desvario li o mais pungente grito de socorro que jamais a afliçãohumana calou..."O milagre não veio — infame que fui! — e aquele lampejo de esperança, o derradeirotalvez que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de pálpebras. Os tiquesnervosos diminuíram de freqüência, cessaram. A cabeça descaiu-lhe de novo para o seio;e a morta-viva, revivida um momento, reentrou na morte lenta do seu marasmosonambúlico."Enquanto isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro venenosamente... "Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre transcorrida num escuro cárcere da Inquisição.Nem sei como digeri aqueles feijões!"A sala tinha três portas, uma abrindo para a cozinha, outra para a sala de espera, aterceira para a despensa. Com os olhos já afeitos à escuridão, eu divisava melhor ascoisas; enquanto aguardávamos o café, corri-os pelas paredes e pelos móveis,distraidamente. Depois, como a porta da despensa estivesse entreaberta, enfiei-os por elaa dentro. Vi lá umas brancuras pelo chão sacos de mantimento — e, pendurada a umgancho, uma coisa preta que me intrigou. Manta de carne seca? Roupa velha? Estava eude rugas na testa a decifrar a charada, quando o urutu, percebendo-o, silvou em tom cortante:— "É curioso? O inferno está cheio de curiosos, moço..."Vexadíssimo, mas sempre em guarda, achei de bom conselho engolir o insulto e calarme.Calei-me. Apesar disso o homem, depois duma pausa, continuou, entre manso eirônico:— "Coisas da vida, moço. Aqui a patroa pela-se por um naco de bugio moqueado, e alidentro há um para abastecer este pratinho... Já comeu bugio moqueado, moço?— "Nunca! Seria o mesmo que comer gente...— "Pois não sabe o que perde!... filosofou ele, como um diabo, a piscar os olhinhos decobra.Neste ponto o jogo interrompeu-me a estória. Melchior estava colocado e Gaspar, comtrês pontos, sacava para Ugarte. Houve luta; mas um "camarote" infeliz de Gaspar deu oponto a Ugarte. "Pintou" a pule 13, que eu não tinha. Jogo vai, jogo vem, "despintou" a 13e deu a 23. Pela terceira vez Ugarte estragava-me o jogo. Quis insistir mas não pude. Aestória estava no apogeu e antes "perder de ganhar" a próxima quiniela do que perderum capitulo da tragédia. Fiquei no lugar, muito atento, a ouvir o velhote."Quando me vi na estrada, longe daquele antro, criei alma nova. Fiz cruz na porteira."Aqui nunca mais! Credo!" e abri de galopada pela noite adentro.Passaram-se anos."Um dia, em Três Corações, tomei a serviço um preto de nome Zé Esteves. Traquejado davida e sério, meses depois virava Esteves a minha mão direita. Para um rodeio, para curaruma bicheira, para uma comissão de confiança, não havia outro. Negro quando acertade ser bom vale por dois brancos. Esteves valia por quatro."Mas não me bastava. O movimento crescia e ele sozinho não dava conta. Empenhadoem descobrir um novo auxiliar que o valesse, perguntei-lhe uma vez:— "Não teria você, por acaso, algum irmão de sua força?— "Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas o coitado não existe mais...— "De que morreu?— "De morte matada. Foi morto a rabo de tatu... e comido.— "Comido? repeti com assombro.— "É verdade. Comido por uma mulher.A estória complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a decifração.— "Leandro, continuou ele, era um rapaz bem apessoado e bom para todo serviço.Trabalhava no Tremedal, numa fazenda em...— "... em Mato-Grosso? Do Coronel Teotônio?— Isso! Como sabe? Ah, esteve lá! Pois dê graças de estar vivo; que entrar na casa do carrascoera fácil, mas sair? Deus me perdoe, mas aquilo foi a maior peste que o raio dodiabo do barzabu do canhoto botou no mundo!...— O urutu, murmurei, recordando-me. Isso mesmo...— "Pois o Leandro — não sei que intrigante malvado inventou que ele... que ele, perdãoda palavra, andava com a patroa, uma senhora muito alva, que parecia uma santa. Oque houve, se houve alguma coisa, Deus sabe. Para mim, tudo foi feitiçaria da Luduina, aquela mulata amiga do coronel. Mas, inocente ou não, foi que o pobre do Leandroacabou no tronco, lanhado a chicote. Uma novena de martírio — lepte! lepte! E pimentaem cima... Morreu. E depois que morreu foi moqueado.— "???"— "Pois então! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram aquelacarne na despensa e todos os dias vinha à mesa um pedacinho para a patroa comer...Mudei-me de lugar. Fui assistir ao fim da quiniela a cinqüenta metros de distância. Mas nãopude acompanhar o jogo. Por mais que arregalasse os olhos, por mais que olhasse para acancha, não via coisa nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não a pule 13...Monteiro Lobato, 1925 3 - A facada imortal - Monteiro LobatoTodos os tratados de xadrez descrevem a celebre partido jogada por Philidor no séculoXVIII, a mais romântica que ao anais enxadrísticos mencionam. Tão sábia foi, tãoimprevista e audaciosa, que recebeu o nome de Partida Imortal. Embora depois dela sejogassem pelo mundo milhões de partidas de xadrez, nenhuma ofuscou a obra prima dofamoso Philidor André Danican.Também a "facada" do Indalício Ararigboia, um saudoso amigo morto, se vemperpetuando nos anais da alta malandragem como a La Gioconda do gênero ou comoestá admitido nas rodas técnicas - a Facada Imortal. Indalício foi positivamente o Philidordos faquistas.Lembro-me bem: era um rapaz lindo, de olhos azuis e voz suavíssima; as palavras vinhamlhecomo pêssegos embrulhados em paina, e sabiamente camaralentadas, porque, diziaele, o homem que fala depressa é um perdulário que deita fora o melhor ouro da suaherança. Ninguém dá tento ao que esse homem diz, porque quod abundat nocet. Se nãovalorizamos nós mesmos as nossas palavras, como pretendermos que os outros as prezem?Meu mestre nesse ponto foi o general Pinheiro Machado, num discurso que lhe ouvi certavez. Que astuciosa e bem calculada lentidão! Entre uma palavra e outra o Pinheiro punhaum intervalo de segundos, como se sua boca estivesse perdigotando pérolas. E aassistência o ouvia com religiosa unção absorvendo como pérolas era emitido.Substantivos, adjetivos, verbos, advérbios e conjunções caiam sobre os ouvintes comoseixos lançados à lagoa; e antes que cada um chegasse bem lá no fundo, o general nãosoltava outro. Cacetíssimo, mas de alta eficiência. -Foi ele então o teu mestre na arte de falar valorizadamente... -Não. Nasci sonolento. O Pinheiro apenas me abriu os olhos quanto ao valormonetário do Dom que a natureza me dera. Depois de ouvir esse seu discurso é que passeia dedicar-me à nobre arte de fazer com os homens o que fazia Moisés nas rochas dodeserto. -Fazê-los "sangrar"... -Exatamente. Vi que se somasse minha natural lentidão do falar com algumapsicologia vienense (Freud, Adler), o dinheiro dos homens me atenderia como as galinhasatendem ao quit, quit das donas de casa. Para cada bolso há uma chave Yale. Minhatécnica se resume hoje em só abordar a vítima depois de descobrir a chave certa. -E como consegue? -Tenho minha álgebra. Considero os homens equações do terceiro grau - equaçõespsicológicas, está claro. Estudo-os, deduzo, concluo - e esfaqueio com precisãopraticamente absoluta. O mordedor comum é um ser indecoroso, digno do desprezo quelhe dá a sociedade. Pedincha, implora; apenas desenvolve, sem a menor preocupaçãoestética, o surrado cantochão do mendigo: "Uma esmolinha pela amor de Deus!" Comigo,não! Assumi essa atitude (porque o pedir é uma atitude na vida), primeiro, por esporte;depois, com o fito de reabilitar uma das mais velhas profissões humanas. -Realmente, a intenção é nobilíssima...Indalício racionalizara a "mordedura" ao ponto da sublimação. Citava filósofos gregos.Mobilizava músicos de fama. -Liszt, Mozart, Debussy, dizia ele, nobilitaram essa coisa comum chamada "som" àforça de harmonizá-lo de certo modo. O escultor nobilitará até um paralelepípedo de rua,se lhe der forma estética. Por que não nobilitaria eu o deprimentíssimo ato de pedir?Quando lanço a minha facada, sempre depois de sérios estudos, a vítima não me dá oseu dinheiro, apenas paga a finíssima demonstração técnica com que o tonteio. Paga-mea facada do mesmo modo que o amador de pintura paga o arranjo de tintas que o pintorfaz sobre uma estopa, um quadrado de papelão, uma relíssima tábua. O faquista comum, notem, nada dá em troca do miserável dinheirinho que tira. Eu dou emoções gratíssimas àsensibilidade das criaturas finas. Minha vítima tem que ser fina. O simples fato da minhaescolha já é um honroso diploma, porque nunca me desonrei em esfaquear criaturasvulgares, de alma grosseira. Só procuro gente na altura de compreender as sutilezas daspaisagens de Corot ou dos versos de Verlaine.Como se requintava a formosura do Indalício nos momentos em que discorria assim!Envolvia-o a aura dos predestinados, dos apóstolos que se sacrificam para aumentar dealguma coisa a beleza do mundo. De sua barba loura, à Cristo, escapavam os suavesreflexos do cendre. As frases fluíam-lhe da boca de fino desenho como o óleo ou o melescorre duma ânfora grega suavemente inclinada. Suas palavras traziam patins aos pés.Tudo no Indalício eram mancais de esferas. Talvez ajudasse a circunstância de sersurdinho. Isso de não ouvir bem põe veludos em certas pessoas, dá-lhes um macio devioloncelo. Como não se distraem com a vulgaridade dos sons que todos nósnormalmente ouvimos, atentam mais em si próprios, "ouvem-se mais", concentram-se.Nosso costume naquele tempo era reunir-nos todas as noites no velho "Café Guarany"com y grego - a reforma ortográfica ainda dormia no calcanhar do Medeiros eAlbuquerque; ficávamos ali horas trabalhando para a Antártica e comentando as proezasde cada um. Rodinha muito interessante e vária, cada um com a sua mania, a sua arte oua sua tara. Ligava-nos apenas uma coisa: o pendor comum pelas finuras mentais emqualquer campo que fosse, literatura, perfídia, oposição ao governo, arte de viver, amor.Um deles era absolutamente ladrão - desses que a sociedade trancafia. Mas que ladrãoengraçado! Estou hoje convencido de que roubava unicamente com um fim: deslumbrara rodinha com a primorosa estilização das proezas. Outro era bêbedo profissional - e talvezpela mesma razão: informar à roda sobre o que é a vida do clã de adoradores do álcoolque passam a vida nos "botecos". Outro era o Indalício... -E antes, Indalício? Que é que fazia? -Ah, perdia o tempo numa escola do Rio como professor de meninos. Nada maisdesinteressante. Fugi, farto e refarto. Odeio qualquer atividade vazia dessa "emoção dacaça" que considero a coisa suprema da vida. Fomos caçadores durante milhões emilhões de anos, na nossa longuíssima fase de homens primitivos. A civilização agrícola écoisa de ontem, e por isso ainda espinoteiam com tanta vivacidade, dentro do nossomodernismo, os velhos instintos do caçador. Continuamos os caçadores que éramos,apenas mudados de caça. Como nestas cidades de hoje não existem aquele Ursusspeleus que no período das cavernas nós caçávamos (ou nos caçavam), matamos a sededo instinto com as amáveis cacinhas da civilização. Uns caçam meninas bonitas, outroscaçam negócios, outros caçam imagens e rimas. O Breno Ferraz caça boatos contra ogoverno... -E eu que caço? Perguntei. -Antíteses, respondeu de pronto o Indalício. Fazes contos, e que é o conto senãouma antítese estilizada? Eu caço otários, com a espingarda da psicologia. E como isso medá para viver folgadamente, não quero outra profissão. Tenho prosperado. Calculo quenestes últimos três anos consegui remover do bolso alheio para o meu cerca de duzentoscontos de réis.Aquela revelação fez que o nosso respeito pelo Indalício aumentasse de dez pontos. -E sem abusar, continuou ele, sem forçar a nota, porque meu intento nunca foiacumular dinheiro. Em dando para o passadio à larga, está ótimo. O lucro maior queobtenho, entretanto, está na contenteza de alma, na paz da consciência - coisas quenunca tive nos anos em que, como professor de educação moral, eu transmitia àsinocentes crianças noções que hoje considero absolutamente falsas. As nevralgias daminha consciência naquela época, quando provava nas aulas, com infames sofismas,que a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos! Com o perpassar do tempo o Indalício desprezou completamente as facadas simples, oudo "primeiro grau", como dizia ele, isto é, as que apenas produzem dinheiro. Passou ainteressar-se unicamente pelas que representavam "soluções de problemas psicológicos" elhe davam, além do íntimo prazer da façanha, a mais pura glória ali da rodinha. Umanoite desenvolveu-nos o teorema do máximo... -Sim cada homem, em matéria de facada, tem o seu máximo; e o faquista quearranca 100 mil réis dum freguês cujo máximo é de um conto, lesa-se a si próprio - e aindaperturba a harmonia universal. Lesa-se em 900 mil réis e interfere na ordempreestabelecida do cosmos. Aqueles 900 mil réis estavam predestinados a mudarem-se debolso naquele dia, naquela hora, por meio daqueles agentes; a inépcia do mau faquistaperturba a predestinação, dess'arte criando uma ondulazinha de desarmonia que até serreabsorvida contribui para o mal estar do Universo.Essa filosofia ouvímo-la no dia do seu "grande deslize", quando o Indalício nos apareceu noGuarany seriamente incomodado com a perturbação que essa sua "mancada" podiaestar determinando na harmonia das esferas.-Errei, disse ele. Meu assalto foi contra o Macedo, que, vocês sabem, é a maior vítima dosmordedores de S. Paulo. Mas fui precipitado em minhas conclusões quanto ao seumáximo, e dei-lhe um golpe de dois contos apenas. A prontidão com que atendeu,reveladora de que estava ganhando três, demonstrou-me, da maneira mais evidente, queo máximo do Macedo é de cinco contos! Perdi. Pois, três contos... E o peor não está nisso,mas na desconfiança em que fiquei de mim mesmo. Estarei por acaso decaindo? Nadamais grotesco do que ferir em oitenta ao otário cujo máximo é de cem. O bom atiradornão gosta de acertar perto Há de enfiar as balas, exatinho, no centro geométrico do alvo.Nesse dia foram necessários dez chopes para abafar a inquietação do Indalício; e aorecolher-nos, lá apela meia noite, saí com ele a pretexto de consolá-lo, mas na realidadepara impedi-lo de passar pelo Viaduto. Mas afinal descobri a aspirina adequada ao caso. -Só vejo um meio de te restaurares na confiança perdida, meu caro Indalício: daresuma facada no Raul! Se o consegues, terás realizado a proeza suprema de tua vida. Quetal?Os olhos de Indalício iluminaram-se, como os do caçador que depois de perder um coatídá de frente com um precioso veado - e foi assim que teve início a construção d grandeobra prima do nosso saudoso Indalício Ararigboia.O Raul, velho companheiro de roda, tinha-se, e era tido, como absolutamente imune afacadas. Rapaz de modestas posses, vivia duns 400 mil réis mensalmente drenados dogoverno; mas tratava-se bem, vestia-se com singular apuro, usava lindas gravatas deseda, bons sapatos; para perpetuar semelhante proeza, entretanto, adquirira o hábito denão por fora dinheiro nenhum, e hermeticamente fechara o corpo à facadas, por mínimasque fossem. Recebido o ordenado no começo do mês, pagava as contas, as prestações,retinha os miúdos do bonde e pronto - ficava até o mês seguinte leve como um beija-flor.Em matéria de facadas sua teoria sempre fora de negação absoluta. -"Morre" quem quer, dizia ele. Eu por exemplo não sangrarei nunca porque de hámuito deliberei não sangrar! O mordedor pode atacar-me de qualquer lado, norte, sul,leste, oeste, a jusante ou a montante, e com uso de todas as armas inclusive as do arsenaldo Indalício: inútil! Não sangro, pelo simples fato de haver deliberado não sangrar - alémde que por sistema não ando com dinheiro no bolso.Indalício não ignorava a inexpugnabilidade do Raul, mas como se tratasse dumcompanheiro de roda nunca pensou em tirar o ponto a limpo. Minha sugestão daqueledia, porém, fê-lo mudar de idéia. A inexpugnabilidade do Raul entrou a irritá-lo comointolerável desafio à sua genialidade. -Sim, disse o Indalício, porque verdadeiramente imune à facadas não creio quehaja ninguém no mundo. E se alguém, como o Raul, faz essa idéia de si, é que nunca foi abordado por um verdadeiro mestre - um Balzac como eu. Hei de destruir ainexpugnabilidade do Raul; e se meu golpe vier a falhar, talvez até me suicide com apistola de Vatel. Viver desonrado aos meus próprios olhos, nunca!E Indalício pôs-se a estudar o Raul afim de descobrir-lhe o máximo - sim, porque até nocaso do Raul aquele gênio insistia em ferir no máximo! Duas semanas depois confessou-mecom a habitual suavidade: -O caso está resolvido. O Raul realmente jamais levou facadas e considera-se emabsoluto imune - mas lá no fundo d alma, ou do inconsciente, está inscrito o seu máximo:cinco mil réis! Tenho orgulho em revelar a minha descoberta. Raul considera-seinesfaqueável, e jurou morrer sem a menor cicatriz no bolso; a sua consciência, portanto,não admite máximo nenhum. Mas o máximo do Raul é de cinco! Para chegar a essaconclusão tive de insinuar-me nos desvãos de sua alma com a gazua do Freud. -Só cinco? -Sim. Só cinco - o máximo absoluto! Se o Raul se psicanalisasse, descobriria, comassombro, que apesar das suas juras de imunidade a natureza o colocou na casa doscinco. -E vai o nosso Balzac sujar-se com uma facada de cinco mil réis! Em que ficou a tuafixação do mínimo em duzentos? -De fato, hoje não dou facadas de menos de duzentos, e me julgaria desonrado seme abaixasse a uma de cento e oitenta. Mas o caso do Raul, especialíssimo, me força aabir uma exceção. Vou esfaqueá-lo em cinqüenta mil réis... -Por que cinqüenta? -Porque ontem, inopinadamente, a minha álgebra psicológica demonstrou que hápossibilidade de um segundo máximo no Raul, não de cinco, como está inscrito no seuinconsciente, mas de dez vezes isso, como consegui ler na aura desse inconsciente!... -No inconsciente do inconsciente!... -Sim, na verdadeira estratosfera do inconsciente raulino. Mas só serei bem sucedidose não errar na escolha do momento mais favorável, e se conseguir deixá-lo em ponto debala por meio da aplicação de diversas cocaínas psicológicas. Só quando Raul se sentirlevitado, expandido, como a alma bem rarefeita, é que sangrará no máximo astral que eudescobri!...Mais um mês gastou o Indalício em estudos do Raul. Certificou-se do dia em que lhepagavam no Tesouro, do quanto lhe levavam as contas e prestações, e quantocostumava sobrar-lhe depois de satisfeitos todos os compromissos. E não há por aqui todaa série de preparos psicológicos, físicos, metapsíquicos, mecânicos e até gastronômicos aque o gênio do Indalício submeteu o Raul; encheria páginas e páginas. Resumirei dizendoque o ataque em vôo pique só seria realizado depois do completo "condicionamento" davítima por meio da sábia aplicação de todos os "matadores" . O nosso pobre Indalíciofaleceu sem saber que estava lançando os fundamentos do moderno totalitarismo...No dia 4 do mês seguinte avisou-se da iminência do golpe. -Vai ser amanhã, às oito da noite, no Bar Baron, quando o Raul cair na leve crisesentimental que lhe provocam certas passagens do Petit Chose de Daudet, recordadasentre a Segunda e a terceira dose do meu vinho... -Que vinho? -Aha, um que descobri em estudos in anima nobile - nele mesmo: a única vinhaçaque de mistura com o Daudet do Petit Chose deixa o Raul, durante meio minuto,sangrável no máximo astral! Vocês vão abrir a boca. Estou positivamente criando a minhaobra prima! Aparece amanhã no Guarany às nove horas para ouvires o resto...No dia seguinte fui ao Guarany às oito e já lá encontrei a roda. Pu-los ao par dosdesenvolvimento da véspera e ficamos a comentar os prós e contras do que àquela horaestaria se passando no Bar Baron. Quase todos jogavam no Raul. Às nove entrou o Indalício, suavemente. Sentou-se. -Então? Perguntei.Sua resposta foi tirar do bolso e sacudir no ar uma nota nova de cinqüenta mil réis. -Fiz um trabalho preparatório perfeito demais para que me falhasse o golpe, disseele. No momento decisivo bastou-me um quit, quit dos mais simples. Os cinqüenta fluíramdo bolso do Raul para o meu - contentes, felizes, alegrinhos...O assombro da roda chegou ao auge. Era realmente escachante aquele prodígio! -Maravilhoso, Indalício! Mas põe isso em troca miúdo, pedimos. E ele contou: -Nada mais simples. Depois do preparo do terreno, a técnica foi, entre a Segunda ea terceira dose da vinhaça e o Daudet, ferir fundo nos cinqüenta - e o que eu esperavaocorreu. Ultra-surpreso de haver no globo quem o avaliasse em cinqüenta mil réis, a ele,que na intimidade trevosa do subconsciente só admitia o miserável máximo de cinco, Rauldeslumbrou-se... Raul perdeu o controle de si próprio ... sentiu-se levitado, rarefeito pordentro, estratosférico - e com os olhos emparvecidos meteu a mão no bolso, sacou tudoquanto havia lá, exatamente esta nota, e entregou-ma, sonambúlico, num incoercívelimpulso de gratidão! Instantes depois voltava a si. Corou como a romã, formalizou-se e sónão me agrediu porque a minha sábia fuga estratégica não lhe deu tempo...Maravilhamo-nos sinceramente. Aquela Yale psicológica er talvez a única, dos milhões dechaves existentes no universo, capaz de abrir a carteira do Raul para um faquista; e o tê-ladescoberto e manejado com tanta segurança era coisa que indiscutivelmente vinhafechar com chave de ouro a gloriosa carreira do Indalício - como de fato fechou: mesesdepois a gripe espanhola de 1918 nos levava esse precioso e amável amigo. -Parabéns, Indalício! Exclamei. Só a má fé te negará o Dom da genialidade. APartida Imortal do grande Philidor já não está sem pendant no mundo. Criaste a FacadaImortal>Como ninguém da roda jogasse xadrez, todos me olharam perguntativamente. Mas nãohouve tempo para explicações. Vinha entrando o Raul. Sentou-se, calado, contido. Pediuuma caninha (sinal de rarefação no bolso). Ninguém disse nada.. Esperamos que ele seabrisse. Indalício estava profundamente absorvido nos "Pingos e Respingos" dum "Correioda Manhã" sacado do bolso.Súbito, veio-me uma infinita vontade de rir, e foi rindo que rompi o silêncio: -Então, seu Raul, caiu, heim?...Realmente desapontado, o querido Raul não achou a palavra chistosa, o "espírito" comque em qualquer outra circunstância comentaria um seu desaso qualquer. Limitou-se asorrir amareladamente e a emitir um "Pois é!..." - o mais desenxabido "Pois é" aindapronunciado no mundo. Tão desenxabido, que o Indalício engasgou-se de rir... com o"Pingo" que lia. 1942 4 - O colocador de pronomes - Monteiro LobatoAldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para umafutura e bem merecida canonização,Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório.Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneose pai duns acrósticos dados à luz no "Itaoquense" , com bastante sucesso.Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objetoamado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, doescrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota,histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plenasessão da câmara e desd'aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vagomedo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscadosnem tufos de cabelos no nariz.Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava.Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostorura doscinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores - o que havia deinocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se nobolsinho de cima e medição de passos na rua d'Ela, nos dia de folga. Depois, a serenatafatal à esquina, com o Acorda, donzela...Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.Aqui se estrepou...Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativose reticências: Anjo adorado! Amo-lhe!Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão.Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias desobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto -para umas certidõesinhas, explicou.Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou oescritório, fechou a carranca e disse: -A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefenatural, não permitirei nunca - nunca, ouviu? - que contra ela se cometa o menor deslize.Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o -É sua esta peça de flagrante delito?O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação. -Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha etem a audácia de o declarar... Pois agora...O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhospara a rua, sondando uma retirada estratégica. -... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si,comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante: -Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano!Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!...Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões. -Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo deminha filha!E voltando-se para dentro, gritou:- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro. -Laurinha, quer o coronel dizer...O velho fechou de novo a carranca. -Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendoque ama-"lhe". Se amasse a ela deveria dezer amo-"te". Dizendo "amo-lhe" declara queama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo sedeclara amor à minha mulher... -Oh, coronel... -... ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa donariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombropaternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial. -Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa - quem fala, e neste casovassuncê; da Segunda pessoa - a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa -de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!Não havia fuga possível.O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida,torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garruchacom espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca,enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente: -Deus vos abençoe, meus filhos!No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professorAldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinqüenta anos a fio coçaria nagramática a sua incurável sarna filológica.Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu acoqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e acatapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo cominvenções de matar o tempo - empalamento de moscas e moidelas das respectivascabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía - Aldrovandoapalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar dofurúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal...Deixêmo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer omorro, arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete detrabalho, fossando à luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro,seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia,duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a fazer-se lembrado.Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneirasonde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna.Sabe-os de cór, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena dumaesfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-seda broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrásdas raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestresda boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor - mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cujasoporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.Em certa época viveu três anos acampado em Vieria. Depois vagabundeou, como umRobinson, pelas florestas de Bernardes.Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente.Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá deGonçalves Dias vinha citar "pomos de Hesperides" na laranjeira do seu quintal, Aldrovandoesfogueteava-o com apostrofes: -Salta fora, regionalismo de má sonância!A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daípara cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco. -A ingresia d'hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver emputrefação está para o corpo vivo.E suspirava, condoído dos nossos destinos: -Povo sem língua!... Não me sorri o futuro de Vera-Cruz...E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca dopovo. -Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos?Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.E, baixando as cangalhas, lia: -Teve lugar ontem... É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, comote conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada! -... no Trianon... Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenosarrevesos? Tão bem ficava - a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho oLogratório...Tarelos é que são, tarelos!E suspirava deveras compungido. -Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boasletras d'antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma - Horácio! Imperao desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré semvazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago deóperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim,que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos umgentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir,(1) creio, à... advinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!... -Mas a evolução... -Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a "evolução" darwinica, osvocábulos macacos - pitecofonemas que "evolveram", perderam o pelo e se vestem hojeà moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneiraescandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: aestática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito emapóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra osácaros do idioma. -"Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granitoprepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraçomerece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem aosemelhante a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem...Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe comopunhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria àcriação dum Santo Ofício gramatical.Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobreAldrovando as mais cruéis chalaças. -Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seriaauto-condenar-nos à morte! Tinha graça!Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguémalcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n'alma, teve quemudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada,vencer o seu velho engulho pelos "galicígrafos de papel e graxa". Transigiu e, breve, desses"pulmões da pública opinião" apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheucolunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodosengrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara empleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre emtoda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da suacolubrina sem raia. E por fim os "periódicos" fecharam-lhe a porta no nariz, alegando faltade espaço e coisas. -Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso,para quanto recende à podriqueira!... Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um diaalimpar-vos a gafa!... exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó dascambaias botinas de elástico.Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical. -Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de todaespécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê,que me não move amor de bens terrenos.Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinhamodesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-sefilologicamente.Ele, todavia, não esmoreceu. -Experimentemos processo outro, mais suasório.E anunciou a montagem da "Agência de Colocação de Pronômes e Reparos Estilísticos".Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço acompor-se com os "afeites" do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma,nele se faria obra limpa e escorreita.Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos aconsertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores nãomais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar. -Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que metraduzisse a memória em latim...Aldrovando ergueu os óculos para a testa: -E traduzi em latim o tal ingranzéu? -Em latim ou grego, pois que o não consigo entender... Androvando empertigou-se. -Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alí com o alveitar da esquina.Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecerempapado no chafurdeiro da corrupção...O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo. -Hei-de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula osmaráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja... Salta rumor!E foi-lhes "empós", Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua.Descoberta a "asnidade", ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhoresargumentos catequistas.Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta - "Ferra-secavalos" - escoicinhava a santa gramática. -Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece queerre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção...O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca. -Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos medarás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedirte,em nome do asseio gramatical, que o expunjas. -? ? ? -Que reformes a tabuleta, digo. -Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acasorachada? -Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.O honesto ferreiro não entendia nada de nada. -Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz... -Digo que está a forma verbal com eiva grave. O "ferra-se" tem que cair no plural,pois que a forma é passiva e o sujeito é "cavalos".O ferreiro abriu o resto da boca. -O sujeito sendo "cavalos", continuou o mestre, a forma verbal é "ferram-se" -"ferram-se cavalos!" -Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que ... -... que "ferra-se cavalos" é um solecismo horrendo e o certo é "ferram-se cavalos". -V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural.Aquele "se" da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferracavalos - Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, eficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou. -Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!... Mas nãodiscutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum "m" ali... -Se V. S. paga...Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada,perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida etodas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se delaPor mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do "m" commaus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dosdizeres e lá raspou o "m" do professor.A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada!Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando oferreiro, às brutas, lhe barrou o passo. -Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e nalíngua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se. -"Sancta simplicitas!" ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca dasconsolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiude borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou... O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para acontinuação da guerra. -Não hei de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendiea muita ciência que hei acumulado.E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos.Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde maisclaudicava a gente de Gomorra.Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia enoite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cadaum, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casosresolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fracodo brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa...Pronto o primeiro tomo - Do pronome Se - anunciou a obra pelos jornais, ficando à esperadas chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolosonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventospecuniários.Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederiapor cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nemvícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecáriossempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida nagavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!... EAldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases parareceber o editor que vinha vindo...Que vinha vindo mas não veio, aí!... As semanas se passaram sem que nenhumrepresentante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro. -Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo "Nãoé vendável"; ou: "Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?Aldrovando, com a morte n'alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimasresistências. -Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todasas armas e irei até ao fim. Bofé!Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca oalquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardode Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciênciaimpressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.Disse e fez.Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais.Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como nãoexistia igual.Dedicou-o a Fr. Luz de Souza: À memória daquele que me sabe as dores, O Autor.Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filhodum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: ...daquele que me sabe... e nempoderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fadosintervieram, porém - até os fados conspiram contra a língua! - e por artimanha do diaboque os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo ...d'aquele que sabe-me as dores... E assim saiu nos milheiros de cópias da avultadaedição.Mas não antecipemos.Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente,o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI - Do método automático de bem colocaros pronomes - engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burrosde carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o "914" da sintaxe, limpando-ada avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéiaalopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzí-la a ampolas parainjeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.E quem se injetasse ou engolisse uma pípula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curarse-iapara sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falarcomo no escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo, evidentemente incurável,haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em dose suficientepara libertas o mundo do infame sujeito.Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa a dentro aprimeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nospelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu: -Me dá um mata-bicho, patrão!Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele "Me" tão fora dos mancais, e tomandoum exemplo da obra ofertou-a ao "doente". -Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos destevermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro: -Isto no "sebo" sempre renderá cinco tostões. Já serve!Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo àtarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriuo primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com ahorrenda cinca: "daquele QUE SABE-ME as dores". -Deus do céu! Será possível?Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, nohediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo- "que sabe-me"...Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marcade dor - dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia - permaneceu imóvel unsmomentos.Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina eviolentíssima ânsia.Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou: -Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!E morreu.De que não sabemos - nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatroventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número umda Colocação dos Pronomes.Paz à sua alma. 1924 5 - A policitemia de dona Lindoca - Monteiro Lobato Dona Lindoca não era feliz. Quarentona bem puxada, apesar dos trinta e sete anos emque fizera finca-pé, via pouco a pouco chegar a velhice com seu empaste de feições,rugas e macacoas. Não era feliz, porque nascera com o gênio da ordem e do asseio meticuloso – e agenteassim passa a vida a amofinar-se com criados e coisinhas. E como também nascera castae amorosa, não ia com o desamor e desrespeito do mundo. O marido jamais lhe retribuírao amor como os mimos entressonhados em noiva. Não tinha "caídos", nem usava para asua sensibilidade, sempre menineira, desses pequeninos nada cariciosos que para certascriaturas constituem a suprema felicidade na terra. Isso, porém, não traria a dona Lindoca mal de monta, excedente a suspiros e queixas àsamigas, se a certeza da infidelidade do Fernando não visse um dia estragar tudo. Estava aboa senhora a escovar-lhe o paletó quando sentiu vago aroma suspeito. Foi logo aosbolsos – e apanhou o corpo de delito num lencinho perfumado. - Fernando, você deu agora para usar perfume? – indaga a santa esposa, aspirando olenço comprometedor. E "Coeur de Jeannette", inda mais... O marido, pegado de surpresa, armou a cara mais alvar de toda a sua coleção de"caras circunstanciais" e murmurou o primeiro rebate sugerido pelo instinto de defesa:- você estar sonhado, mulher... Mais teve de render-se à evidência, logo que a esposa lhe chegou ao nariz o crime. Há coisas inexplicáveis, por mais lépida que seja a presença de espírito de um homemtraquejado. Lenço cheiroso no bolso de marido que jamais usou perfume, eis uma. Põe emti o caso, leitor, e vai estudando desde já uma saída honrosa para a hipótese de tesuceder o mesmo. - Pilhéria de mau gosto do Lopes ... O melhor que lhe acudiu foi lançar à conta do espírito brincalhão do seu velho amigoLopes mais aquela. Dona Lindoca, está claro, não engoliu a grosseira pílula – e desdeaquele dia entrou a suspirar suspiros de um novo gênero, com muita queixa às amigassobre a corrupção dos homens. Mais a realidade era diferente de tudo aquilo. Dona Lindoca não era infeliz; seu maridonão era um mau marido; seus filhos não eram maus filhos. Gente toda ela muito normal,vivendo a vida que todas as criaturas normais vivem. Dava-se apenas o que se dá semprena existência da generalidade dos casais pacíficos. A peça matrimonial "Multiplicativos"tem um segundo ato em excesso trabalhoso na procriação e criação dos rebentos. É umadoradoura de anos, na qual os atores principais mal têm tempo de cuidar de si, tanto lhesmonopolizam as energias os cuidados absorventes da prole. Nesse período longo erotineiro, quanto perfume vago não trouxe da rua o doutor Fernando! Mas o olfato daesposa, sempre saturado com o cheirinho das crianças, jamais deu tento de nada. Um dia, porém, começou a dispersão. Casaram-se as filhas e os filhos foram deixando oborralho um por um, como passarinhos que já sabem fazer uso das asas. E como oesvaziamento do lar ocorreu no período muito curto de dois anos, o vácuo trouxe a donaLindoca uma penosa sensação de infelicidade. O marido não mudara em coisa nenhuma, mas como só agora dona Lindoca tinhatempo de dar-lhe atenção, parecia-lhe mudado. E queixava-se dos seus eternos negóciosfora de casa, de sua indiferença, do seu "desamor". Certa vez, perguntou-lhe ao jantar: - Fernando, que dia é hoje? - Treze, filha. - Treze, só? Está claro que treze só. Impossível que fosse treze e mais alguma coisa. É da aritmética. Dona Lindoca arrancou um suspiro dos mais sugados. - Essa aritmética antigamente era bem mais amável. Pela aritmética antiga, hoje não seria treze só – e sim treze de julho... O doutor Fernando bateu na testa. - É verdade, filha! Não sei como me escapou que é hoje dia dos teus anos. Estacabeça... - Essa cabeça não falha quando as coisas a interessam. É que para você eu já passei...Mas console-se meu caro. Não me ando sentindo bem e breve deixarei você livre nomundo. Poderá então, sem remorso, regalar-se com as Jeannettes... Como as recriminações alusivas ao caso do lenço perfumado fossem uma "Scie", omarido adotara a boa política de "passar", como no pôquer. "Passava" todas as alusõesda esposa, meio eficaz em torcer em germe o pepino de um debate tão inútil quãoindigesto. Fernando "passou" a Jeannette e aceitou a doença. - Sério? Sente qualquer coisa, Lindoca? - Uma ansiedade, uma canseira, isto desde que vim de Teresópolis. - Calor. Estes verões cariocas derrancam até aos mais pintados. - Sei quando é calor. O mal-estar que sinto deve ter outra causa. - Nervoso, então. Por que não vai ao médico? - Já pensei nisso. Mais, a qual médico? - Ao Lanson, filha. Que idéia! Pois não é o médico da casa? - Deus me livre. Depois que matou a mulher do Esteves? Isso quer você... - Não matou tal, Lindoca. É tolice propalar essa maldade inventada por aquela caninanada Marocas. Ela é que diz isso. - Ela e todos. Voz corrente. Além do mais, depois daquele caso da corista di Trianon... O doutor Fernando espirrou uma gargalhada. - Não diga mais nada! – exclamou. – adivinho tudo. A eterna mania. Sim, era a mania. Dona Lindoca não perdoava a infidelidade do marido, nem do seunem do das outras. Em matéria de moralidade sexual não cedia milímetro. Como fosse denatural casta, exigia castidade de todo mundo. Daí o desmerecerem ante seus olhostodos os maridos que na voz das comadres andavam de amores fora do ninho conjugal.Aquele doutor Lanson perdera-se no conceito de dona Lindoca não porque houvesse"matado" a mulher do Esteves – pobre tuberculosa que mesmo sem médico tinha demorrer –, mas porque andara às voltas com uma corista. A gargalhada do marido enfureceu-a. - Cínicos! São todos os mesmos... Pois não vou ao Lanson. É um sujo. Vou ao doutorLorena, que é homem limpo, decente, um puro. - Vai filha. Vai ao Lorena. A pureza desse médico, que eu cá chamo hipocrisiarequintada, com certeza lhe há de ajudar muito a terapêutica. - Vou sim, e nunca mais me há de entrar aqui outro médico. De Lovelaces ando eu farta– concluiu dona Lindoca sublinhando a indireta. O marido olho-a de soslaio, sorriu filosoficamente e, "passando" o "Lovelaces", pôs-se aler os jornais. No dia seguinte, dona Lindoca foi ao consultório do médico puritano e voltou radiante. - Tenho uma policitemia – foi logo dizendo. – garante ele que não é grave, emborarequeira tratamento sério e longo. - Policitemia? – repetiu o marido com vincos na testa, sinal de que entendia suas pitadasde medicina. - Que espanto é esse? Policitemia, sim, a doença da minha margarida e da grã-duquesaEstefânia, disse-me o doutor. Mas cura-me, assegurou – e ele sabe o que diz. Como é finoo doutor Lorena! Como sabe falar!... - Sobretudo falar... - Já vem você. Já começa a implicar com o homem só porque é um puro... Pois, quantoa mim, só sinto té-lo conhecido agora. É um médico decente, sabe? Fino, amável, muitoreligioso. Religioso, sim! Não perde a missa das onze na Candelária. Diz as coisas de ummodo que até lisonjeia agente. Não é um sujo como o tal Lanson, que anda metido comatrizes, que vê humores em tudo e põe as clientes nuas para examiná-las. - E o teu Lorena como as examina? Vestidas? - Vestidas, sim, está claro. Não é nenhum libertino. E se o caso exige que a cliente sedispa em parte, ele aplica os ouvidos mas fecha os olhos. É decente, ora aí está! Não fazdo consultório casa de encontros. - Venha cá, minha filha. Noto que você fala com leviandade de sua doença. Tenhominhas noções de medicina e parece-me que essa tal policitemia... - Parece nada. O doutor Lorena afirmou-me que não é coisa de matar, embora de curalenta. Doença até distinta, de fidalgos. - De rainha, grã-duquesa,sei... - Só que exige muito tratamento – sossego, regime alimentar, coisas impossíveis nestacasa. - Por quê? - Ora essa. Quer você que uma dona de casa possa cuidar de si tendo tanta coisa emolhar? Vá a pobre de mim deixar de matar-se na trabalheira para ver como isto vira depernas para o ar. Tratamento na regra, só para essas que tomam o marido das outras. Avida é para elas... - Deixemos isso, Lindoca, até cansa. - Mas vocês não se cansam delas. - Elas, elas! Que elas, mulher? – exclamou, já exasperado, o marido. - As perfumadas. - Bolas. - Não briguemos. Basta. O doutor... ia-me esquecendo. O doutor Lorena quer que vocêapareça por lá, no consultório. - Para quê? - Ele dirá. Das duas às cinco. - Muita gente a essa hora? - Como não? Um médico daqueles...Mas a você não fará esperar. É negócio à parte daclínica. Vai? O doutor Fernando foi. O médico desejava adverti-lo de que a doença de donaLindoca era grave, havendo perigo sério caso o tratamento que prescrevera não fosseseguido à risca. - Muito sossego, nada de contrariedades, mimos. Principalmente mimos. Indo tudo acontento, num ano poderá estar boa. Do contrário, teremos mais um viúvo em poucotempo. A possibilidade da morte da esposa, quando assim se antolha pela primeira vez aomarido de coração sensível, abala profundamente. O doutor Fernando deixou oconsultório e rodando para casa ia a recordar o tempo róseo do namoro, o noivado, ocasamento, o enlevo dos primeiros filhos. Não era meu marido. Podia até figurar entre osótimos, no juízo dos homens que se perdoam uns aos outros os pequenos arranhões nopacto conjugal, filhos da curiosidade adâmica. Já as mulheres não compreendem assim,e dão demasiado vulto a borboleteios que muitas vezes só servem para valorizar asesposas aos olhos dos maridos. Assim é que a notícia da gravidade da moléstia de donaLindoca despertou em Fernando um certo remorso, e o desejo de redimir com carinhos denoivos os anos de indiferença conjugal. - Pobre Lindoca. Tão boa de coração... Se azedou um bocado, a culpa foi só minha. Otal perfume... Se ela pudesse compreender a absoluta insignificância do frasco dondeemanou aquele perfume... Ao entrar em casa indagou logo da esposa. - Está em cima – respondeu a criada. Subiu. Encontrou-a no quarto, numa preguiçosa. - Viva a minha doentezinha! E abraçou-a e beijo-a na testa. Dona Lindoca espantou-se. - Ué! Que amores esses agora? Até beijos, coisas que me dizias fora da moda... - Vim do médico. Confirmou-me o diagnóstico. Não há gravidade nenhuma, mas exigetratamento de rigor. Muito sossego, nada de amofinações, nada que abale o moral. Vouser o enfermeiro da minha Lindoca e hei de pô-la sãzinha. Dona Lindoca arregalou os olhos. Não reconhecia no indiferente Fernando de tantotempo aquele marido amável, tão perto do padrão com que sempre sonhara. Atédiminutivos... - Sim – disse ela –, tudo isso é fácil de dizer, mas sossego de fato, repouso absoluto, como,nesta casa? - Por que não? - Ora, você será o primeiro a dar-me aborrecimentos. - Perdoe-me, Lindoca. Compreenda a situação. Confesso que não fui contigo o esposoentressonhado. Mas tudo mudará. Você está doente e isto vai fazer com que tudorenasça – até o velho amos dos vinte e anos, que não morreu nunca, apenas encasulouse.Não imagina como me sinto cheio de ternura para com a minha mulherzinha. Estoutodo lua-de-mel por dentro. - Os anjos digam amém. Só receio que com tanto tempo o mel já esteja azedo... Apesar de mostrar-se assim tão incrédula, a boa senhora irradiava. O seu amor pelomarido era o mesmo dos primeiros tempos, de modo que aquela ternura o fez logo reflorir,à imitação das árvores desfolhadas pelo inverno a um chuvisco de primavera. E a vida de dona Lindoca mudou. Os filhos passaram a vir vê-la com freqüência – logoque o pai os advertiu da vida periclitante da boa mãe. E mostravam-se muito carinhoso esolícitos. Os parentes mais chegados, também por influxo do marido, amiudaram as visitas,de tal jeito que dona Lindoca, sempre queixosa outrora de isolamento, se fosse queixar-seagora seria de solicitude excessiva. Veio uma tia pobre do interior tomar conta da casa, chamando a si todas aspreucupações amofinantes. Dona Lindoca sentia um certo orgulho da sua doença, cujo nome lhe soava bem aosouvidos e fazia abrir a boca dos visitantes – policitemia... E como o marido e os demais lhelisonjeassem a vaidade enaltecendo o chique das policitemias, acabou por considerar-seuma privilegiada. Falavam muito na rainha Margarida e na grã-duquesa Estefânia como se fossem pessoasde casa, havendo um dos filhos conseguido e posto na parede o retrato de ambas. Ecerta vez que os jornais deram um telegrama de Londres, noticiando achar-se enferma aprincesa Mary, dona Lindoca sugeriu logo, convencidamente: - Vai ver que é uma policitemia... A prima Elvira trouxa de Petrópolis uma novidade de sensação. - Viajei com o doutor Maciel na barca. Contou-me que a baronesa de Pilão Arcadotambém está com policitemia. E também aquela grandalhona loura, mulher do ministroFrancês – a Grouvion. - Sério? - Sério, sim. É doença de gente graúda, Lindoca. Este mundo!... até em questão dedoença as bonitas vão para os ricos e as feias para os pobres! Você, a Pilão Arcado e a Grouvion, com policitemia – e lá a minha costureirinha do Catete, que morre dia e noiteem cima da máquina de costura, sabe o que lhe deu? Tísica mesentérica... Dona Lindoca fez cara de nojo. Eu nem sei onde "essa gente" apanha tais coisas. Outra ocasião, ao saber que uma sua ex-criada de Teresópolis fora ao médico e vieracom o diagnóstico de policitemia, exclamou, incrédula, a sorrir com superioridade: - Duvido! A linduína com policitemia? Duvido!... Vai ver que quem disse tal bobagem foiLanson, aquela topeira. A casa virou perfeita maravilha de ordem. As coisas surgiam à hora e no ponto, como seanões invisíveis estivessem a prover tudo. A cozinheira, ótima, fazia pitéus de arregalar oolho. A arrumadeira alemã dava idéia de uma abelha em forma de gente. A tia Gertrudesera uma nova governanta de casa como jamais existiu outra. E nenhum barulho, todos na ponta dos pés, com "psius" aos estouvados. E presentinhos.Os filhos e noras jamais esqueciam a boa mamãe, ora com flores, ora com os doces deque ela mais gostava. O marido fizera-se caseiro. Deu jeito aos negócios e pouco saía, e ànoite nunca, passando a ler para a esposa os crimes dos jornais nas raras vezes em quenão tinha visitas. Dona Lindoca começou a viver vida de céu aberto. - como me sinto feliz agora! – dizia. – Mas para que nada haja perfeito, tenho apolicitemia. Verdade é que esta doença não me incomoda em nada. Não a sintoabsolutamente – além de que é uma doença fina... O medico vinha vê-la amiúde, mostrando boa cara à doente e má ao marido. - Demora ainda, meu caro. Não nos iludamos com aparências. As policitemias sãoinsidiosas. O curioso era que dona Lindoca realmente não sentia coisa nenhuma. O mal-estar, aansiedade do começo que a levara a consultar o médico, de muito que havia passado.Mas quem sabia da sua doença não era ela, e sim o médico. De modo que enquanto elenão lhe desse alta, teria de continuar nas delícias daquele tratamento. Certa vez, chegou a dizer ao doutor Lorena: - Sinto-me boa, doutor, completamente boa. - Parece-lhe, minha senhora. O característico das policitemias é iludir assim os doentes, epô-los derreados ou liquidados, à menor imprudência. Deixe-me cá levar o barco a meumodo, que para outra coisa não queimei as pestanas na escola. A grã-duquesa Estefâniatambém se julgou boa, certa vez, e contra o parecer do médico assistente deu-se alta a siprópria... - E morreu? - Quase. Recaiu e foi um custo pô-la de novo no ponto em que estava. O abuso, minhasenhora, a falta de confiança no médico, tem levado muita gente para outro mundo... E repetiu ao marido aquele parecer, com grande encanto de dona Lindoca, que nãocessava de abrir-se em elogios ao grande clínico. - Que homem! Não é a toa que ninguém diz "isto" dele, Neste rio de Janeiro das máslínguas."Amantes, minha senhora", declarou ele outro dia à prima Elvira, "ninguém meapontará jamais nenhuma". O doutor Fernando ia se saindo com uma ironia à moda antiga, mas recolheu-se atempo, por amor ao sossego da esposa, com a qual jamais esgrimira depois da doença. Eresignou-se a ouvir o estribilho de sempre: "É um homem puro e muito religioso. Fossemtodos assim e o mundo seria um paraíso". Durou seis meses o tratamento de dona Lindoca e duraria doze, se um belo dia nãorebentasse um grande escândalo – a fuga do doutor Lorena para Buenos Aires com umacliente, moça de alta sociedade. Ao receber a notícia dona Lindoca recusou-se a dar crédito. - Impossível! Há de ser calúnia. Vai ver como ele logo aparece por aqui e tudo sedesmente. O doutor Lorena jamais apareceu; o fato confirmou-se, fazendo dona Lindoca passarpela maior desilusão de sua vida. - Que mundo, meu Deus! – murmurava. – em que mais acreditar, se até o doutor Lorenafaz dessas? O marido rejubilou-se, por dentro. Sempre vivera engasgado com a pureza do charlatão,comenta todos os dias em sua presença sem que ele pudesse explodir o grito d'alma quelhe punha um nó na garganta: "Puro nada! É um pirata igual aos outros" O abalo moral não fez dona Lindoca recair enferma, como era de supor. Sinal de queestava perfeitamente curada. Para melhor certificar-se disso o marido lembrou-se deconsultar outro médico. - Pensei no Lemos de Souza – sugeriu ele. – está com muito nome. - Deus me livre! – acudiu logo a doente. – dizem que é amante da mulher de Bastos. - Mas trata-se de um grande clínico, Lindoca. Que importa o que lá do seu namorodizem as más-línguas? Neste Rio ninguém escapa. - A mim importa muito. Não quero. Veja outro. Escolha um decente. Sujeiras não admitoaqui. Depois de comprido debate acordaram em chamar Manuel Brandão, professor daescola e já em adiantado grau de senilidade. Não constava que fosse amante deninguém. Veio o novo doutor. Examinou cuidadosamente a doente e ao cabo concluiu comabsoluta segurança. - Vossa excelência não tem nada – disse ele. – absolutamente nada. Dona Lindoca pulou, muito lépida, da sua preguiçosa. - Então sarei de uma vez, doutor? - Sarou... Se é que esteve doente. Não consigo ver sinal nenhum em seu organismo dedoença presente ou passada. Quem foi o médico? - O doutor Lorena... O velho clínico sorriu, e voltando-se para o marido: - É o quarto caso de doença imaginária que o meu colega Lorena (aqui entre nós, umrefinadíssimo patife) leva a explorar durante meses. Felizmente raspo-se para Buenos Aires,ou "desinfetou" o Rio, como dizem os capadócios. Foi um assombrado. O doutor Fernando abriu a boca. - Mas então... - É o que lhe digo – reafirmou o médico. – A sua senhora teve qualquer crise nervosa quepassou com o repouso. Mas, policitemia, nunca! Policitemia!... até me espanta que tãogrosseiramente pudesse o tal Lorena iludir a todos com essa pilhéria... A tia Gertrudes voltou para sua casa no interior. Os filhos foram se tornando mais parcosnas visitas – e os demais parentes idem. O doutor Fernando retornou a vida de negócios enunca mais teve tempo de ler crimes para a desconsolada esposa, sobre cujos ombrosrecaiu a velha trabalhadeira de zelar pela casa. Em suma, a infelicidade de dona Lindoca voltou com armas e bagagens, fazendo-asuspirar suspiros ainda mais profundos que os de outrora. Suspiros de saudade. Saudade dapolicitemia... 6 - Os pequeninos - Monteiro Lobato Ouvi certa vez uma conversa inesquecível. A esponja de doze anos a esmaeceu emcoisa nenhuma. Por que motivo certas impressões se gravam de tal maneira e outras seapagam tão profundamente? Eu estava no cais, à espera do Arlanza, que me ia devolver de Londres um velho amigojá de longa ausência. O nevoeiro atrasara o navio. - Só vai atracar às dez horas – informou-me um sabe tudo de boné. Bem. Tinha eu de matar uma hora de espera dentro dum nevoeiro absolutamente forade comum, dos que negam aos olhos o consolo da paisagem distante. A visão morria adez passos; para além, todas as formas desapareceriam no algodoamento da névoa.Pensei nos fogs londrinos que o meu amigo devia trazer na alma, e comecei a andar porali à toa, entregue ao seu trabalho, tão freqüente na vida, de "matar o tempo". Minhatécnica em tais circunstâncias se resume em recordar passagens da vida. Recordar éreviver. Reviver. Reviver os bons momentos tem as delícias do sonho. Mas o movimento do cais interrompia amiúde o meu sonho, forçando-me a cortar e areatar de novo o fio das recordações. Tão cheio de nós foi ele ficando que o abandonei.Uma das interrupções me pareceu mais interessante que a evocação do passado, porquea vida exterior é mais viva que a interior – e a conversa dos três carregadores erainegavelmente "água-forte". Três portugueses bem típicos, já maduros; um deles de rosto singularmente amarrotadopelos anos. Um incidente qualquer ali do cais dera origem à conversa. - Pois esse caso, meu velho dizia um deles -, me lembra a historia da ema que tive numcercado. Também ela foi vítima dum animalzinho muitíssmo menos, e que seriaesmagado, como esmagamos moscas, se lhe ficasse ao alcance do bico – mas nãoficava... - Como foi? – perguntaram. - Eu nesse tempo estava de cima, dono de terras, com casa minha, meus animais decocheira, família. Foi um ano antes daquela rodada que me levou tudo... Peste demundo!... tão bem que ia indo bem e me afundei, perdi tudo, tive de rolar morro abaixoaté bater com o lombo neste cais entregue ao mais baixo dos serviços, que é o decarregador... - Mas como foi o caso da ema? Os ouvintes não queriam filosofias; ansiavam por pitoresco – e o homem por fim contou,depois de sacar o cachimbo, enchê-lo, acende-lo. Devia ser hitória das que exigempontuação a baforadas. - Eu morava em minhas terras, lá onde vocês sabem – na Vacaria, zona de campos emais campos, aquela planura sem fim. E há lá muita ema. Conhecem? É a avestruz doBrasil, menor que a avestruz africana, mas mesmo assim um avejão dos mais alentados.Que força tem! Domar uma ema corresponde a domar um potro. Exige o mesmo muque.Mas são aves de boa índole. Domesticam-se facilmente e eu andava querendo ter umaem meus cercados. - São utilidade? – perguntou o utilitário da roda. - De nenhuma; apenas enfeitam a casa. Aparece um visitante. "Viu minha ema?" – e láo levamos a examiná-la de perto, a assombrar-se do tamanhão, abrir a boca diante dosovos. São assim como laranja baiana das graúdas. - E o gosto? - Nunca provei. Ovos para mim só os de galinha. Mas, como ia dizendo, fiquei comidéia de apanhar uma ema nova para domesticá-la – e um belo dia eu mesmo oconsegui graças à ajuda dum periperi. A história começava a interessar. Os companheiros do narrador ouviam-no suspensos. - Como foi? Ande logo. - Foi um dia em que saí a cavalo para uma chegada à fazendinha do João Coruja, quemorava a uns seis quilômetros do meu rancho. Montei no meu pampa e fui varando amacega. Aquilo lá não há caminhos, só trilhas de vai-um pelo capim rasteiro. Os olhosalcançam longe naquele mar de verde-sujo que some na distância. Fui andando. Derepente vi a uns trezentos metros longe qualquer coisa que se movia na macega. Pareifirme a vista. Era uma ema a dar voltas num círculo estreito. "Que diabo disto será aquilo?"– perguntei comigo mesmo. Emas eu vira muitas, mas sempre a pastarem sossegadas ou afugirem no galope, nadando com as asas curtas. Assim a dar voltas era novidade. Fiqueide rugas na testa. Que será? A gente da roça conhece muito bem a natureza de tudo; sevê qualquer coisa na "forma da lei", não se espanta porque é o natural; mas se vêqualquer coisa fora da lei, fica logo de orelha em pé – porque não é natural. Que tinhaaquela ema para dar tantas voltas em torno do mesmo ponto? Não era da lei. Acuriosidade me fez esquecer o negócio do João Coruja. Torci a rédea do pampa e lá mefui para ema. - E ela fugiu no galope... - O natural seria isto, mas não fugiu. Ora, não há ema que não fuja do homem – nemema, nem animal nenhum. Nós somos o terror da bicharia toda. Parei o pampa a cincopassos dela e nada, e nada da ema fugir. Nem me viu; continuou nas suas voltas, com araflito. Pus-me a observá-la, intrigado. Seria seu ninho ali? Não havia sinal de ninho. A pobreave girava e girava, fazendo movimentos de pescoço sempre na mesma direção, para aesquerda como se quizesse alcançar qualquer coisa com o bico. A roda que fazia era deraio curto, aí duns três metros, e pelo amassamento do capim calculei que já havia dadoumas cem voltas. - Interessante! – murmurou um dos companheiros. - Foi o que pensei comigo mesmo. Mais que interessante: esquisitíssimo. Primeiro, nãofugir de mim; segundo, continuar nas voltas aflitas, sempre com aqueles movimentos depescoço para a esquerda. Que seria? Apeei e fui chegando. Olhei-a de bem perto. "Acoisa é embaixo da asa", vi logo. A pobre criatura tinha qualquer coisa sob a asa, eaquelas voltas e aquele movimento de pescoço eram para alcançar o sovaco. Aproximeimemais. Segurei-a. a ema, arquejante, não fez a menor resistência. Deixou-se agarrar.Ergui-lhe a asa e vi... Os ouvintes suspenderam o fôlego. - ... e vi uma coisa vermelha atracada ali, uma coisaque se assustou e voou, e foi pousar num galho seco a vinte passos de distância. Sabem oque era? Um periperi... - Que é isso? - Um gaviãozinho dos menores que existem, assim do tamanho dum sanhaço – umgaviãozinho-carijó. - Mas não disse que era vermelho? - Estava vermelho do sangue da ema. Agarrara-se-lhe ao sovaco, que é um pontodespido de penas, e ferrara-se à carne com as unhas, enquanto com o bico iaarrancando nacos de carne viva e devorando-os. Aquele ponto do sovaco é o único semdefesa num corpo da ema, porque ela não alcança com o bico. É como esse ponto quetemos nas costas e não podemos coçar com unhas. O periperi conseguira-se localizar-seali e estava a seguro de bicadas. Examinei a ferida. Pobre ema! Uma ferida enorme, assim dum palmo de diâmetro eonde o bico do periperi fizera menos mal que suas garras, pois, como tinha de manter-seaferrado, ia mudando as garras à proporção que a carne dilacerada cedia. Nunca viferida mais arrepiante. - Coitada! - As emas são duma estupidez famosa, mas o sofrimento abriu a inteligência daquela.Fê-la compreender que eu era seu salvador – e a mim entregou-se como quem se entregaa um deus. O alívio que minha chegada lhe produziu, fazendo com que o periperi alargasse, iluminou-lhe os miolos. - E o gaviãozinho? - Ah, o patife, muito vermelho do sangue da ema, lá ficou no galho seco à espera deque eu me afastasse. Pretendia retornar ao banquete! "Eu já te curo, malvado!"-exclamei, sacando o revólver. Um tiro. Errei. O periperi voou longe. - E a ema? - Levei-a para casa, curei-a. E tive-a lá por uns meses num cercado. Por fim, soltei-a.não vai comigo isso de escravisar os pobres animalzinhos que Deus fez para vida solta. Seno cercado estava livre dos periperis, era em compensação uma escrava saudosa dascorrerias pelo campo. Se fosse consultada, certamente que preferiria os riscos daliberdade à segurança da escravidão. Soltei-a. "Vai, minha filha, segue o teu destino. Seoutro periperi te apanhar, arruma-te lá com ele." - Mas então é assim? - Um velho caboclo da zona informou-me que aquilo é freqüente. Esses minúsculosgaviõezinhos procuram as emas. Ficam traiçoeiramente a rondá-las, à espera de que sedescuidem e levantem a asa. Eles, então, rápidos como setas, lançam-se; e se conseguemalcançar-lhes o sovaco, ali enterram as garras e ficam como carrapatos. E as emas,apesar de imensas comparadas com eles, acabam vencidas. Caem exaustas; morrem, eos malvadinhos repastam-se no carname durante dias. - Mas como eles sabem? É o que mais admiro... - Ah, meu caro, a natureza está inçada de coisas assim, que para nós são mistérios.Com certeza houve um periperi que por acaso fez isso uma primeira vez, e como deucerto ensinou a lição aos outros. Estou convencido de que os animais ensinam uns aosoutros os que vão aprendendo. Oh, vocês, criaturas da cidade não imaginam que coisashá na natureza da roça... O caso da ema foi comentado sob todos os ângulos – e deu um broto. Fez sair damemória do carregador de cara amarrotada uma história vagamente similar, em quebichinhos muito pequenos destruíram a vida moral dum homem. - Sim, destruíram a vida de um bicho imensamente maior, como sou eu emcomparação com as formigas. Fiquem vocês sabendo que a mim aconteceu coisa aindapior que o acontecido à ema. Fui vítima dum formigueiro... Todos arregalaram os olhos. - Só se já foste hortelão e as formigas te comeram a fazenda – sugeriu um. - Nada disso. Comeram-me mais que a fazenda, comeram-me a alma. Destruíram-memoralmente – mas foi sem querer. Pobrezinhas. Não as culpo de nada. - Conta lá isso depressa, Manuel. O arlanza não tarda. E o velho contou. - Eu era fiel da firma Toledo & Cia., com obrigação de tomar conta daquele grandearmazém da rua tal. Vocês sabem que tomar conta dum depósito de mercadorias é coisaséria, porque o homem se torna o único responsável por tudo quanto entra e sai. Ora, eu,português dos antigos, desses de antes quebrar que torcer, fui escolhido para "fiel" porqueera fiel – era e sou. Não valho nada, sou um pobre homem ao léu, mas honradez estáaqui. Meu orgulho sempre foi esse. Criei reputação desde menino. "O Manuel é dos bons;quebra mas não torce." Pois não é que as formigas me quebraram? - Conta lá isso depressa... - A coisa foi assim. Na qualidade de fiel do armazém, nada entrava nem saía sem serpor minhas mãos. Eu fiscalizava tudo e com tal severidade que Toledo & Cia. Juravamsobre mim como sobre a bíblia. Certa vez entrou lá uma partida de 32 sacos de arroz, que contei, conferi e fiz empilhar a um canto, junto a uma pilha de velhos caixões que láestavam encostados de muito tempo. Trinta e dois. Contei-os e recontei-os e escrevi nolivro de entradas 32, nem mais um, nem menos um. E no dia seguinte, conforme velhohábito meu, ainda me fui à pilha e recontei os sacos. Trinta e dois. Pois muito que bem. O tempo se passa. O arroz lá fica meses à espera de negócios, atéque um dia recebo do escritório ordem para entregá-lo ao portador. Vou dirigir a entrega.Fico na porta do armazém conferindo os sacos que por ali passavam às costas de doiscarregadores – um, dois, vinte, trinta e um... faltava o último. - Anda com isso! – berrei ao carregador que fora buscá-lo, mas o bruto apareceu-me ládos fundos com as mãos vazias: "Não há mais nada". - Como não há mais nada? – exclamei. – são 32. Falta um. Vou buscá-lo, vai ver. Ele foi e voltou na mesma: "Não há mais nada". - Impossível! – e fui eu mesmo fazer a verificação e nada achei. Misteriosamentedesaparecera um saco de arroz de pilha... Aquilo pôs-me tonto de cabeça. Esfreguei os olhos. Cocei-me. Voltei ao livro deentradas; reli o assento; claro como o dia: 32. Além disso eu me lembrava muito bemdaquela partida por causa dum incidente agradável. Logo que terminei a contagem euhavia dito "32, ultima dezena do camelo!" e aproveitei o palpite na venda da esquina. Milréis na dezena 32: de tarde apareceu-me o empregadinho com 80 mil réis. Dera o camelocom 32. Vocês bem sabem que essas coisas a gente não esquece. Eram pois 32 sacas – e comoentão só estavam lá 31? Pus-me a parafusar. Furtar ninguém furtara, porque eu era o maisfiel dos fiéis, não arredava pé da porta e dormia lá dentro. Janelas gradeadas de ferro.Porta uma só. Que ninguém furtara ao saco de arroz era coisa que eu juraria perante todos ostribunais do mundo, como o jurava para a minha consciência. Mas a saca de arrozdesaparecera... e como era? Tive de comunicar ao escritório o desaparecimento – e foi o maior vexame da minhavida. Porque nós, operários, temos a nossa honra, e a minha honra era aquela – era ser oúnico responsável por tudo quanto entrasse e saísse daquele depósito. Chamaram-me ao escritório. - Como explica a diferença, Manuel? Cocei a cabeça. - Meu senhor – respondi ao patrão - , bem quizera eu explicá-la, mas por mais que torçaos miolos não o consigo. Recebi os 32 sacos de arroz, contei-os e recontei-os, e tanto eram32 que nesse dia deu essa dezena e "mamei" do vendeiro da esquina 80 "paus". O arrozdemorou lá meses. Agora recebo ordem para entregá-lo ao caminhão. Vou presidir àretirada e só encontro 31. Furtá-lo, ninguém o furtou; isso juro, porque a entrada doarmazém é uma só e eu sempre fui cão de fila – mas o fato é que o saco de arrozdesapareceu. Não sei explicar o mistério. As casas comerciais têm que seguir certas normas, e se eu fosse o patrão faria o queele fez. Já que era o Manuel o responsável único, se não havia explicação para o mistério,pior para o Manuel. - Manuel – disse o patrão -, a nossa confiança em você sempre foi completa, comovocê muito bem sabe, confiança de doze anos; mas o arroz não podia ter-se evaporadocomo água ao fogo. E como desapareceu um saco podem desaparecer mil. Quero quevocê mesmo nos diga o que devemos fazer. Respondi como devia. - O que há de fazer, meu senhor, é despedir o Manuel. Ninguém furtou a saca de arrozmas a saca de arroz confiada à guarda do Manuel desapareceu. O que o patrão tem afazer o que o Manuel faria se estivesse em seu lugar: despedi-lo e contratar outro. O patrão disse: - Muito lamento ter de agir assim, Manuel, mas tenho sócios que me fiscalizam os atos, eserei criticado se não fizer como você mesmo me aconselha. O velho carregador parou para avivar o cachimbo. - E foi assim, meus caros, que, depois de doze anos de serviço no armazém de Toledo &Cia., fui para o olho da rua, suspeitado de ladrão por todos meus colegas. Se ninguémpodia furtar aquele arroz e o arroz desaparecera, qual o culpado? O Manuelevidentemente. Fui para a rua, meus caros, já velhusco e sem carta de recomendação, porque recuseia que a firma me quis dar por esmola. Em boa consciência, que carta poderiam darme osSrs. Toledo & Cia.? Ah, o que sofri! Saber-me inocente e sentir-me suspeitado – e sem meios de defesa.Roubar é roubar, seja um mil réis, sejam contos. Cesteiro que faz um cesto faz um cento. Eeu, que era um homem feliz porque compensava a minha pobreza com a fama dehonestidade sem par, rolei para a classe dos duvidosos. E o pior era o rato que me roia osmiolos. Os outros podiam satisfazer-se atribuindo a mim o furto, mas eu, que sabia daminha inocência, não arrancava aquele rato da cabeça. Quem tiraria de lá o saco dearroz? Esse pensamento ficou-me lá dentro como um berne dos cabeludos. Dois anos se passaram, em que envelheci dez. um dia recebo recado da firma: "queaparecesse no escritório". Fui. Dera -, o mistério desaparecimento do saco de arroz estádecifrado e você reabilitado da maneira mais completa. Ladrões tiraram de lá o arroz semque você visse... - Não pode ser, meu senhor! Tenho orgulho do meu trabalho de guarda. Sei queninguém entrou lá durante aqueles meses. Sei. O chefe sorriu. - Pois saiba que inúmeros ladrõezinhos entraram e saíram com o arroz. Fiquei tonto. Abri a boca. - Sim, as formigas... - As formigas? Não estou entendendo nada, patrão... Ele contou então tudo. A partida dos 32 sacos fora arrumada, como já disse, junto auma pilha de velhos caixões vazios. E o último saco ficava pouco acima do nível do ultimocaixão – disso eu me lembrava perfeitamente. Fora esse caso desaparecido. Pois bem. Umbelo dia o escritório dá ordem ao novo fiel para remover de lá os caixões. O fiel executa-a– mas ao fazê-lo nota uma coisa: grãos de arroz derramados no chão, em redor dumolheiro de formigas saúvas. Foram as saúvas as roubadoras da saca de arroz número 32! - Como? - Subiram pelos interstícios da caixotaria e furaram o saco último, o qual ficava umpouco acima do nível do último caixão. E foram retirando os grãos um a um. Com oprogressivo esvaziar-se, o saco perdeu o equilíbrio e escorregou da pilha para cima doúltimo caixão – e nessa posição as formigas completaram o esvaziamento... - É... - Os Srs. Toledo & Cia. Pediram-me desculpas e ofereceram-me de novo o lugar, compaga melhorada a titulo de indenização. Sabem o que respondi? "Meus senhores, é tarde.Já não me sinto o mesmo. O desastre matou-me por dentro. Um rato robou-me todo oarroz que havia dentro de mim. Deixou-me o que sou: carregador do porto, saco vazio. Jánão tenho interesse em nada. Continuarei portanto carregador. É serviço de menosresponsabilidade – além de que este mundo é uma pinóia. Pois um mundo onde unsbichinhos inocentes dão cabo da alma dum homem, então isso é lá mundo? Obrigado,meus senhores!" e saí. Nesse momento o Arlanza apitou. O grupo dissolveu-se e também eu fui colocar-me apostos. O amigo de Londres causou-me má impressão. Magro, corcovado. - Que te aconteceu, Marinho? - Estou com os pulmões afetados. Hum! Sempre a mesma – o pequenininho a derrear o grande. Periperi, saúva, bacilo dekoch... 7 - O fisco - Monteiro Lobato CONTO DE NATALPrólogo No princípio era o pântano, com valas de agrião e rãs coaxantes. Hoje é o parque doAnhangabaú, todo ele relvado, com ruas de asfalto, pérgola grata a namoricos noturnos,e Eva de Brecheret, a estátua dum adolescente nu que corre – e mais coisas. Autos voampela vida central, e cruzam-se pedestres em todas as direções. Lindo parque,civilizadíssimo. Atravessando-o certa tarde, vi formar-se ali um bolo de gente, rumo ao qual vinhavindo um polícia apressado. Fogocitose, pensei. A rua é a artéria; os passantes, o sangue. O desordeiro, o bêbado, ogatuno são os micróbios maléficos, perturbadores do ritmo circulatório. O soldado depolícia é o glóbulo branco – o fogócito de metchenikoff. Está de ordinário parado no seuposto, circunvagando olhares atentos. Mal se congestiona o tráfego pela ação anti-socialde desordeiro, o fagócito move-se, caminha, corre, cai afunda sobre o mau elemento earrasta-o para o xadrez. Foi assim naquele dia. Dia sujo, azedo. Céu dúbio, de decalcomania vista pelo avesso. Ar arrepiado. Alguém pertubara a paz do jardim, e em redor desse rebelde logo se juntou um grupode glóbulos vermelhos, vulgo passantes. E lá vinha agora o fagócito fardado restabelecera harmonia universal. O caso girava em torno de uma criança maltrapilha, que tinha a tiracolo uma caixatosca de engraxate, visivelmente feita pelas suas próprias mãos. Muito sarapantado, comlágrimas a brilharem nos olhos cheios de pavor, o pequeno murmurava coisas de ninguématendidas. Sustinha-o pela gola um fiscal da Câmara. - Então seu cachorrinho, sem licença, heim? – exclamava, entre colérico e vitorioso, omastim municipal, focinho muito nosso conhecido. – É um que não é um mas sim legião, esabe ser tigre ou cordeiro conforme o naipe do contraventor. A miserável criança evidentemente não entendia, não sabia que coisa era aquela delicença, tão importante, reclamada assim a empuxões brutais. Foi quando entrou emcena a polícia. Este glóbulo branco era preto. Tinha beiço de sobejar e nariz invasor de meia cara,aberto em duas ventas acesas, relembrativas das cavernas de Trofônio. Aproximou-se erompeu o magote com um napoleônico – "Espalha!". Humildes elas se abriram àquele Sèsamo, e a Autoridade, avançando, interpelou ofisco: - Que encrenca é esta, chefe? - Pois este cachorrinho não é que está exercendo ilegalmente a profissão deengraxate? Encontrei-o banzando por aqui com estes troços, a fisgar com os olhos os pésdos transeuntes e a dizer "engraxa, freguês". Eu vi a coisa de longe. Vim pé ante pé,disfarçando e, de repente, nhoc! "Mostre a licença", gritei. "que licença?", perguntou ele,com arzinho de inocência. "Ah, você diz que licença, cachorro? Está me debochando,ladrão? Espera que te ensino o que é licença, trapo!" e agarrei-o. não quer pagar a multa.Vou levá-lo ao depósito, autuar a infração para proceder de acordo com as posturas –concluiu um soberbo entono o cariado canino de Maxila fiscal. - É isso mesmo. Casca-lhe! E chiando por entre os dentes uma cusparada de esguicho, deu a sua sacudidelasuplementar no menino. Depois voltou-se para os basbaques de ordenou com império desoba africano: - Circula, paisanada! É "purivido" ajuntamentos demais de um Os glóbulos vermelhos dispersaram-se em silêncio. O buldogue lá seguiu com opequeno nas unhas. E o Pau-de-fumo, em atitude de Bonaparte em face das pirâmides,ficou, de dedo no nariz e boca entreaberta, a gozar a prontidão com que, num ápice, suaenergia resolvera o tumor maligno formado na artéria sob a sua fiscalização.O Brás Também lá, no princípio, era o charco – terra negra, fofa, turfa tressuante, sem outravegetação além dessas plantinhas miseráveis que sugam o lodo como minhocas. Aquémda várzea, na terra firme e alta, são Paulo crescia. Erguiam-se casas nos cabeços, eesgueiravam-se ladeiras encostas abaixo: a boa morte, o Carmo, o piques; e ruas,imperador, direita, são bento. Poetas cantavam-lhe as graças nascentes: Ó Liberdade, ó Ponte Grande, ó Glória... Deram-lhe um dia o viaduto do chá, esse arrojo... os paulistanos pagavam sessenta réispara, ao atravessá-lo, conhecerem a vertigem dos abismos. E em casa narravam aaventura às esposas e mães, pálidas de espanto. Que arrojo de homem, o Jules Martinque construíra aquilo! Enquanto São Paulo crescia o Brás coaxava. Enluravam-se naquele brejal legiões desapos e rãs. A noite, do escuro da terra um coral subia de coaxos, pan-pans de ferreiro,latidos de miumbias, glus-glus de untanhas; e, por cima, no escuro do ar, vagalumesziguezagueantes riscavam fósforos às tontas. E assim foi até o dia da avalanche italiana. Quando lá no oeste a terra roxa se revelou mina de ouro das que pagam duzentos porum, a Itália vazou para cá a espuma da sua transbordante taça de vida. E são Paulo, nãobastando ao abrigo da nova gente, assistiu, Antonio, ao surto do Brás. Drenos sangraram em todos os rumos o brejal turfoso; a água escorreu; os evaporidossapos sumiram-se aos pulos para as baixadas do Tietê; rã comestível não ficou uma paramemória da raça; e, breve, em substituição aos guembês, ressurtiu a cogumelagem decentenas e centenas de casinhas típicas – porta, duas janelas e platibanda. Numerosas ruas, alinhadas na terra cor de ardósia, que já o sol ressequira e o ventoerguia em nuvens de pó negro, margearam-se com febril rapidez desses prediozinhostérreos, iguais uns aos outros, como saídos do mesmo molde, pífios, mas únicos possíveisentão. Casotas porvisórias, desbravadoras da lama e vencedoras do pó, à força de preçomódico. E o Brás cresceu, espraiou-se de todos os lados, comeu todo o barro preto da Mooca,bateu estacas no Marco da Meia Légua, lançou-se rumo á penha, pôs de pé igrejas,macadamizou ruas, inçou-se de fábricas, viu surgirem avenidas e vida própria, e cinemas,e o Colombo, e o namoro, e o corso pelo carnaval. E lá está hoje enorme, feito a cidadedo Brás, separado de São Paulo pelo faixão vermelho da várzea aterrada – Pest da Buda àbeira do Tamanduateí plantada. São duas cidades vizinhas, distintas de costumes e de almas já bem diversas. Ir ao Brás éuma viagem. O Brás não é ali, como o Ipiranga; é lá do outro lado, embora mais pertoque o Ipiranga. Diz-se – vou ao Brás, como quem diz – vou à Itália. Uma agregada comoum bom bócio recente e autônomo a uma urbs antiga, filha do país; uma Itália função daterra negra, italiana por sete décimos e algo nuevo pelos restantes. O Brás trabalha de dia e à noite gesta. Aos domingos fandanga ao som do bandolim.Nos dias de festa nacional (destes tem predileção pelo 21 de Abril : vagamente o Brásdesconfia que o barbeiro da inconfidência, porque barbeiro, havia de ser um patrício),nos dias feriados o Brás vem a São Paulo. Entope os bondes no travessio da várzea e cáensardinha-se nos autos: o pai, a mãe, a sogra, o genro e a filha casada no banco de trás;o tio, a cunhada, o sobrinho e o pepino escoteiro no da frente; filhos miúdos porentremeio; filhos mais taludos ao lado do motorista; filhos engatinhantes debaixo dos bancos; filhos em estado fatal no ventre bojudo das matronas. Vergado de molas, o carrogeme sob a carga e arrasta-se a meia velocidade, exibindo a Paulicéia aos olhosarregalados daquele exuberante cacho humano. Finda a corrida, o auto debulha-se do enxame no triângulo e o bando toma de assaltoas confeitarias para um regabofe de spumones, gasosas, croquetes. E tão a sério toma atarefa, que ali pelas nove horas não restam iscas de empada nos armários térmicos, nemvestígios de sorvete no fundo das galadeiras. O Brás devora tudo, ruidosa, alegremente e,com massagens ajeitadoras do abdome, sai impando bem-aventurança estomacal.Caroços de azeitonas, palitos de camarões, guardanapos de papel, pratos de papelãoseguem nas munhecas da petizada como lembrança da festa e consolo aobersalherzinho que lá ficou de castigo em casa, berrando com goela de Caruso. Em seguida, toca para o cinema! O Brás abarrota os desessão corrida. O Brás chora noslances lacrimogêneos da Bertini, e ri nas comédias a gás hilariante da L-Ko mais do queautorizam os mil e cem de entrada. E repete a sessão, piscando o olho: é o jeito de dobrara festa em extensão e obtê-la a meio preço – 550 réis, uma pechincha. As mulheres do Brás, ricas de ovário, são vigorosíssimas de útero. Desovam quase filho emeio por ano, sem interrupções, até que se acabe a corda ou rebente alguma peçaessencial da gestatória. É de vê-las na rua. Bojudas de seis meses, trazem um pepininho à mão e umchoramingas à mama. À tarde o Brás inteiro chia de criançalha a chutar bolas de pano, ajogar pião, ou a piorra, ou o tento de telha, ou o tabefe, com palavreados mistos deportuguês e dialetos de Itália . mulheres escarrancadas às portas, com as mãos ocupadasem manobras de agulha de osso, espigaitam para os maridos os sucessos do dia, que elesouvem filosoficamente, cachimbando calados ou confiando a bigodeira à Humbertoprimo. De manhã esfervilha o Brás de gente estremunhada a caminho das fábricas. A mesmagente reflui à tarde aos magotes – homens e mulheres, de cesta no braço, ou garrafs decafé vazias penduradas no dedo; meninas, rapazes, raparigotas de pouco seio, galantes,tagarelas, com o namorente. Desce a noite, e nos desvão de rua, nos becos, nas sombras, o amor lateja. Ciciamvozes cautelosas das janelas para os passeios; pares em conversa disfarçada nos portõesemudecem quando passa alguém ou tosse lá dentro o pai. Durante o escuro das fitas, nos cinemas, há contatos longos, febricilantes; e quando nosintervalos irrompe a luz, não sabem os namorados o que se passou na tela – mas estão deolhos langues, em quebreira de amor. É o latejar da messe futura. Todo aquele eretismo por música, com cicios depensamentos de cartão postal, estará morto no ano seguinte – legalizado pela igreja epelo juiz, transfeita a sua poesia em choro de crianças e nas trabalhadeiras sem fim dacasa humilde. Tal menina rosada, leve de andar, toda requebros e dengues, que passa na rua vestidacom graça e atrai os olhares gulosos dos homens, não a reconhecereis dois anos depoisna lambona filhenta que deblantera com verdureiro a propósito do feixe de cenouras emque há uma menor que as outras. Filho da lama negra, o Brás é como ela um sedimento de aluvião. É são Paulo, mas nãoé a Paulicéia. Ligados pela expansão urbana, separa-os uma barreira. O velho caso dofidalgo e do peão enriquecido.Pedrinho, sem ser consultado, nasce Viram-se ele e ela. Namoraram-se. Casaram. Casados, proliferaram. Eram dois. O amor transformou-se em três. Depois em quatro, em cinco, em seis... Chamava-se Pedrinho o filho mais velho.A vida De pé, na porta, a mãe espera o menino que foi à padaria. Entra o pequeno com asmãos abandonado. - Diz que subiu; custa agora oitocentos. A mulher, com uma criança ao peito, franze a testa, desconsolada. - Meus Deus! Onde iremos parar? Ontem era a lenha: hoje é o pão... tudo sobe. Roupa,pela hora da morte. José ganhando sempre a mesma coisa. Que será de nós, Deus docéu! E voltando-se para o filho: - Vá a outra padaria, quem sabe lá... se for a mesma coisa, traga só um pedaço. Pedrinho sai. Nove anos. Franzino, doentio, sempre mal alimentado e vestido com osrestos das roupas do pai. Trabalha este no moinho de trigo, ganhando jornal insuficiente para manutenção dafamília. Se não fosse a bravura da mulher, que lavava para fora, não se sabe comopoderiam substituir. Todas as tentativas feitas com intuito de melhorarem de vida comindústrias caseiras esbarram no óbice tremendo do fisco. A fera condenava-os à fome.Assim escravizados, José perdeu aos poucos a coragem, o gosto de viver, a alegria.Vegetava, recorrendo ao álcool para alívio de uma situação sem remédio. Bendito sejas, amável veneno, refúgio derradeiro do miserável, gole inebriante de morteque faz esquecer a vida e lhe resume o curso! Bendito sejas! Apesar da moça, 27 anos apenas, mariana aparentava o dobro. A labuta permanente,os partos sucessivos, a chiadeira da filharada, a canseira sem fim, o serviço emendadocom o serviço, sem folga outra além da que o sono força, fizeram da bonita moça quefora a escanzelada besta de carga que era. Seus dez anos de casada... Que eternidade de canseiras!... Rumor à porta. Entra o marido. A mulher, ninando a pequena de peito, recebe-o com amá nova. - O pão subiu, sabe? Sem murmurar palavra o homem senta-se apoiando nas mãos a cabeça. Estácansado. A mulher prossegue: - Oitocentos réis o quilo agora. Ontem foi a lenha; hoje é o pão... e lá? Sempreaumentaram o jornal? O marido esboçou um gesto de desalento e permaneceu mudo, com o olhar vago. Avida era um jogo de engrenagens de aço entre cujos dentes se sentia esmagar. Inútil.Destino, sorte. Na cama, à noite, confabulavam. A mesma conversa de sempre. José acabavagruninho rugidos surdos de revolta. Falava em revolução, saque. A esposa consolava-o, deesperança posta nos filhos. - Pedrinho tem nove anos. Logo estará em ponto de ajudar-nos. Um pouco mais depaciência e a vida melhora. Aconteceu que nessa noite Pedrinho ouviu a conversa e a referência à sua futuraação. Entrou a sonhar. Que fariam dele? Na fábrica, como o pai? Se lhe dessem aescolher, iria a engraxador. Tinha um tio no ofício, e em casa do tio era menor a miséria.Pingavam níqueis. Sonho vai, sonho vem, brota na cabeça do menino uma idéia, que cresceu, tomouvulto extraordinário e fê-lo perder o sono.. começar já, amanhã, por que não? Fariamesmo a caixa; escovas e graxa, com o tio arranjaria. Tudo às ocultas, para surpresa dospais! Iria postar-se num ponto por onde passasse muita gente. Diria como os outros. "engraxa, freguês!" e níqueis haviam de juntar-se no seu bolso. Voltaria para casarecheado, bem tarde, com ar de quem as fez... E mal mãe começasse a ralhar, eletaparia a boca despejando na mesa um monte de dinheiro. O espanto dela, a caraadmirada do pai, o regalo da criançada com a perspectiva da ração em dobro! E a mãea apontá-lo aos vizinhos: "Estão vendo que coisa? Ganhou, só ontem, primeiro dia, dois milréis!" e a notícia a correr... e murmúrios na rua quando o vissem passar: "É aquele!" Pedrinho não dormiu essa noite. De manhãzinha já estava a dispor a madeira dumcaixote velho sob forma da caixa de engraxate ao molde clássico. Lá a fez. Os preços,bateu com o salto de uma velha botina. As tábuas serrou pacientemente com um facãodentado. Saiu coisa tosca e mal-ajambrada, de fazer rir a qualquer carapina, e pequenademais – sobre ela só caberia um pé de criança igual ao seu. Mas Pedrinho não notounada disso, e nunca trabalho nenhum de carpintaria lhe pareceu mais perfeito. Conclusa a caixa, pô-la a tiracolo e esgueirou-se para a rua, às escondidas. Foi à casado tio e lá obteve duas velhas escovas fora de uso, já sem pêlos, mas que à sua exaltadaimaginação se afiguraram ótimas. Graxa, conseguiu alguma raspando o fundo de quantalata velha encontrou no quintal. Aquele momento marcou em sua vida um apogeu de felicidade vitoriosa. Era comoum sonho – e sonhando saiu para a rua. Em caminho viu o dinheiro crescer-lhe nas mãos,aos montes. Dava à família parte e o resto encafuava. Quando enchesse o canto da arcaonde tinha suas roupas, montaria um "corredor", pondo a jornal outros colegas.Aumentaria as rendas! Enriqueceria! Compraria bicicletas, automóvel, doces todas astardes na confeitaria, livros de figuras, uma casa, um palácio, outro palácio para os pais.Depois... Chegou ao parque. Tão bonito aquilo – a relva tão verde, tosadinha... havia de ser bomo ponto. Parou perto de um banco de pedra e. sempre as futuras grandezas, pôs-se amurmurar para cada passante, fisgando-lhe os pés: "Engraxa, freguês!" Os fregueses passavam sem lhe dar atenção. "É assim mesmo", refletia consigo omenino, "no começo custa. Depois se afreguesam." Súbito, viu um homem de boné caminhando para seu lado. Olhou-lhe para as botinas.Sujas. Viria engraxar, com certeza – e o coração bateu-lhe apressado, no tumulto deliciosoda estréia. Encarou o homem já a cinco passos e sorriu com infinita ternura nos olhos, numagradecimento antecipado em que havia tesouros de gratidão. Mas em vez de lhe espichar o pá, o homem rosnou aquela terrível interpelação inicial: - Então, cachorrinho, que é da licença?Epílogo? Não! Primeiro Ato... Horas depois o fiscal aparecia em casa de Pedrinho com o pequeno pelo braço.Bateu. O pai estava, mas quem abriu foi a mãe. O homem nesses momentos nãoaparecia, para evitar explosões. Ficou a ouvir do quarto o bate-boca. O fiscal exigia o pagamento da multa. A mulher debateu-se, arrepelou-se. Por fim,rompeu em choro. - Não venha com lamúrias – rosnou o buldogue. – conheço o truque dessa agüinha nosolhos, não me embaça, não. Ou bate aqui os vinte mil réis, ou penhoro toda essa cacaria.Exercer ilegalmente a profissão! Ora, dá-se! E olha cá madama, considere-se feliz deserem só vinte. Eu é de dó de vocês, uns miseráveis; se não aplicava o máximo. Mas seresiste dobro a dose! A mulher limpou as lágrimas. Seus olhos endureceram, com uma chispa má de ódiorepresado a faiscar. O fisco, percebendo-o, mojetou: - Isso. É assim que as quero – tesinhas, ah, ah. Mariana nada mais disse. Foi à arca, reuniu o dinheiro existente – dezoito mil réisratinhados havia meses, aos vinténs, para o caso dalguma doença, e entregou-os aofisco. - É o que há – murmurou com tremura voz. O homem pegou o dinheiro e gostosamente o afundou no bolso, dizendo: - Sou generoso, perdôo o resto. Adeuzinho, amor! E foi à venda próxima beber dezoito mil réis de cerveja! Enquanto isso, no fundo do quintal, o pai batia furiosamente no menino.   

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