O Gosto da morte

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Sempre fui fascinado pela morte. Nunca soube o porque do interesse e sinceramente até hoje continuo sem entender, só sei que gosto. Durante minha infância morei em um antigo bairro longe do centro composto por muitos casais de idosos. A maioria sofria com doenças e vicissitudes características da idade avançada. Curiosamente minhas primeiras memórias são de alguns poucos vizinhos morrendo.

Minha mãe durante um grande período da minha infância relutou em permitir que a acompanhasse nos velórios, principalmente quando o falecido era alguém próximo ou parente. Ela estranhava minha insistência e contornava a situação afirmando que velórios e enterros não eram bons locais para uma criança. Penso que meu fascínio em observar os cadáveres rijos azulados em seus caixões não seria muito diferente do que naquela época.

Com a adolescência vieram novos desejos relacionados a morte. Crescia em meu íntimo uma necessidade pungente em saber como as pessoas reagiam enquanto morriam. E foi nesta época que experienciei o primeiro contato próximo com a morte. Havíamos mudado para a região central da cidade e era comum acidentes entre veículos ou atropelamentos de pedestres. Nem preciso contar que meu passatempo principal nesta época era esperar em um grande cruzamento durante o período da tarde que um acidente ocorresse.

Me recordo daquela sexta feira chuvosa em que presenciei o atropelamento violento de Dona Ivete. Ela decidiu atravessar a rua sem observar o fluxo e uma carreta em alta velocidade acertou-a brutalmente. Sua perna direita foi desmembrada imediatamente e voou por alguns metros distante do corpo. Ela também fora arremessada um pouco longe do local de impacto. Sua cabeça encontrou o meio fio brutalmente, abrindo uma fissura que expurgava um quantidade considerável de sangue. Aproximei-me do corpo estirado com o intuito de observar com detalhes o estrago em sua frágil estrutura e fui tomado por um desapontamento incrível. A morte fora instantânea e não pude presenciar as lamúrias de uma pessoa desfalecendo. Por um lado descobri que não tinha graça em somente observar um cadáver – apesar de apreciar um bocado – me interessava mesmo o processo da morte. E esta minha peculiaridade virou minha obsessão, definitivamente.

Por um breve período imaginava-me trabalhando de ajudante em um necrotério ou até quem sabe como legista. Mas foi quando minha mãe adoeceu que finalmente me descobri. Tive de interná-la na unidade de tratamento intensivo do hospital público da cidade, pois segundo os plantonistas ela estava em uma situação crítica. Na UTI os pacientes sempre mudavam – na verdade grande parte deles morriam como esperado e outros recebiam alta. Senti-me muito atraído por aquele ambiente imprevisível. Visitei minha mãe todos os dias possíveis pois as visitas eram controladas e com tempo escasso. Observava minuciosamente os acontecimentos ao redor e acabei inventando uma pequena forma de diversão: apostava comigo mesmo quem não estaria vivo até minha próxima visita.

Ficava tão absorto em meus pensamentos que não pude perceber como minha mãe definhava progressivamente a cada dia. Ela faleceu após completar treze dias internada. Fiquei terrivelmente angustiado em perceber que as visitas ao hospital iriam acabar. Um grande vazio tomou conta de mim. Ironicamente não tive vontade de ir ao velório e enterro de mamãe. Hoje percebo que esta situação elucidou minha escolha profissional, pois tornei-me técnico de enfermagem em UTI.

Com a rotina de trabalho na UTI minha obsessão agravou, alimentei profundamente minha alma com todas aqueles diferentes fatalidades. Parecia que tudo fazia sentido. Pena que na vida tudo que muito desejamos após conquistarmos perdem totalmente a graça. Ao mesmo tempo que minha vontade foi inicialmente saciada senti que faltava um pedaço de mim, algo que me completasse. Claro, no início a sensação de preenchimento em acompanhar a agonia daqueles indivíduos falecendo era constante. Cada lágrima, cada gemido de dor e cada sofrimento me traziam uma excitação muito grande. Acredito que o mesmo prazer que os gordos sentem com a comida ou maníacos sexuais com o sexo.

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