Hurt

4.8K 248 77
                                    

Aviso de gatilho: esse texto pode não ser recomendado para pessoas que já viveram situação de abuso sexual. A leitura é por sua conta e risco.


I hurt myself today

To see if I still feel

I focus on the pain

The only thing that's real


Mais uma dose de uísque sobre os lábios rachados e a ardência lhe tocara a língua de forma explosiva, como sempre o fazia.

Detestava o cheiro e o sabor, mas havia aprendido a amar a sensação rápida que causava em seu corpo; era um torpor necessário, todos os dias. A única coisa que ainda podia lhe arrancar sorrisos fáceis e uma mentirosa alegria momentânea que mal perdurava entre uma virada e outra.

Sozinha, em seu canto escuro do bar, misturava-se ao odor pútrido do álcool e o suor detestável dos frequentadores daquele lugar.

Fediam as vidas jogadas fora graças ao comportamento promíscuo e de simples descarte das garotas que dançavam sensuais em sua bebedeira; fediam os homens nojentos que as observavam e torciam para que ficassem ébrias a ponto de não negar as investidas que eles fariam; fediam as auras maculadas cuja pureza jamais retornaria ao seu estado original.


The needle tears a hole

The old familiar sting

Try to kill it all away

But I remember everything


Ela nunca fizera nada daquilo que via as outras meninas de sua idade fazer: não bebia, não fumava, não trepava. Tinha vinte e três e era a única virgem do seu extenso grupo de amigas. Fora a filha exemplar, aluna perfeita; a pessoa a quem os pais de outros apontavam e diziam "quem dera meu filho fosse como ela". E até então, era o tipo de coisa que fazia com que se sentisse feliz, satisfeita, completa.

Até então.

Naquela época, o bar era conhecido e frequentado pelos estudantes de medicina que queriam extravasar um pouco a pressão dos estudos. Tinha a fama de ser um ótimo lugar para tomar umas doses e dar uns amassos em qualquer um com mais de 1% de álcool no sangue. Ele ainda não tinha cheiro de decadência e vivia sempre abarrotado; no entanto, não eram só estudantes de medicina que infestavam o local com seu odor hospitalar.


What have i become?

My sweetest friend

Everyone I know

Goes away in the end


A noite em que ela decidira se divertir um pouco foi a noite em que ele também resolvera que precisava de uma distração. Teria sido pacífico e leve, se uma de suas amigas não tivesse escolhido exagerar na dose e acreditar que a melhor opção era largá-la à mercê de sua própria sorte, enquanto transava com um desconhecido no lugar mais conveniente. Ela implorara para que não fizesse isso, mas o tesão foi maior do que o pedido desesperado da garota cujos esforços para não fazê-la ir foram em vão.

Assim, fadada ao abandono e sem ninguém com quem tivesse intimidade suficiente para pedir uma carona, respirou a coragem que precisava e saiu apressada dali. Esperava conseguir andar as três quadras até seu apartamento sem nenhuma surpresa desagradável; um fio de esperança que se partiu no instante em que ele puxou seu cabelo.

Seus gritos de desespero não importaram para as pessoas que fecharam suas janelas e ouvidos; as lágrimas descomedidas nada significavam quando ignoradas pelos que passavam por ela. Aquele homem maldito havia violado não apenas seu corpo, mas seu espírito.

Ela era uma das almas maculadas que jamais seria límpida novamente.


You could have it all

My empire of dirt

I will let you down

I will make you hurt


E agora, ela havia tomado o tempo preciso para curar as cicatrizes externas que ainda lhe ardiam amargamente.

Não contara a ninguém sobre o que acontecera naquela noite; seguira a vida em silêncio, disposta a manter o segredo que a ligava a ele. Sabia que não tardaria para o seu retorno e via o rosto cruel nos pesadelos que tinha sempre que fechava os olhos.

Por esse momento se formara; por esse momento fingia viver plenamente.

Contudo, quando a noite chegava, sua verdadeira essência se libertava: a mulher ferida, a mulher que necessitava daquela vingança. As doses de uísque, nessa altura de sua vida, não tinham mais potência para lhe deixar bêbada; eram o combustível necessário.

Então, finalmente a face que tanto lhe assombrava. Ela sabia que o veria de novo, um dia. Depois de cinco anos, era a hora.

Não tomara tempo demais em escolher a próxima vítima e assim que ele saiu atrás de seu alvo mais recente, ela também seguiu o seu.

Antes que ele pudesse atacar a menina, ela fez sua jogada: na bolsa, uma seringa cheia do estoque pessoal de morfina; no pescoço do homem, a chance única de dopá-lo e se vingar da maneira que melhor lhe apetecesse.

Por enquanto, bastaria para suas feridas.


If I could start again

A million miles away

I would keep myself

I would find a way





Hurt (Conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora