Roberta, depois de mais uma sessão de quimioterapia, voltou para o quarto e dormiu. Sua mãe a acompanhava. Um ano lutando contra uma doença que ela já sabia, desde o início, que não teria cura. Sabia de sua morte premeditada e encarou todo o tratamento como uma guerreira, como sempre ouvia de todos. Nem se importava mais com os enjoos, as dores e os incômodos dos efeitos colaterais dos remédios. Apenas ouvia de todos, o tempo todo, a palavra esperança.
Esperança de quê, pensava em seu silêncio, sabia que seus dias estavam terminando, que tivera a chance de repensar sua vida, seus erros e acertos e o melhor de tudo, se despedir das pessoas que tanto amava. Sentia nos olhos de cada um que a acompanhava, a dor e o sofrimento antecipado por uma partida dolorida e solitária. Ninguém sabia o que ela passava, o que pensava, o que queria, do que havia se arrependido, e o que ficaria para trás para sempre. Em seu silêncio apenas fechava os olhos e esperava pela hora marcada. Poderia ser hoje, amanhã ou daqui um tempo. Os médicos disseram que ela estava bem, que prolongara seu tempo, por milagre talvez. Mas Roberta sabia que não, que estava passando pelo que tinha que passar, que já estava escrito e que ela aguentava porque tinha que aguentar. Era forte e lúcida o suficiente para esperar a vontade de Deus em tirar-lhe daquele estado de tortura, tanto dela quanto das pessoas à sua volta.
Dessa semana ela tinha certeza de que não passaria. Pelas visitas que andou recebendo, pelas pessoas que não via e nem tinha notícias há anos, apareceram para se despedir dela. Gente hipócrita! Muitos aqui me traíram, mentiram, riram nas minhas costas e agora vêm chorar lágrimas de colírio barato. Quando uma prima entrou em seu quarto, ela apenas olhou para sua mãe, indignada por permitir a entrada dessa pessoa que a odiava. Não se falavam há anos e agora ela vem, com um gesto de sinto muito e quem sabe, pedir perdão por qualquer coisa.
- Oi, Roberta, como cê tá, querida? - perguntou a sonsa Neide.
- Bem, e você? - respondeu, olhando bem no fundo dos olhos da traidora que havia jurado cuspir e pisar em seu túmulo. - É, prima, tá chegando a hora.
- Fica assim não, vai dar tudo certo - emendou a prima.
Roberta não suportando tamanha falsidade, virou para o outro lado e fechou os olhos. Pelo menos podia fingir não passar bem para não ter que suportar pessoas indesejáveis. E ficou ouvindo a conversa de Neide e sua mãe, na maior intimidade, como se sua vontade que Roberta se curasse fosse tão grande, que ela seria considerada a milagreira da família por querer tão bem uma pessoa que a qualquer momento se tornaria bondosa e santa. Roberta odiava e dizia para todos que quando morresse não queria o rótulo de santa e nem de boazinha. -"Inha" uma pinóia! - dizia, brava com todos que tentavam passar algum tipo de esperança.
Neide ficou um bom tempo ao lado da cama, acariciando sua mão machucada por tantas agulhadas e isso irritava Roberta que tentava de toda maneira arrancar um pedaço da carne daquela mão traidora, com suas unhas, mas não conseguia devido à fraqueza do organismo. Neide ficava admirada pois sentia que Roberta apertava sua mão, pensando que fosse de gratidão. E chorava, emocionada.
Depois que foi embora, Neide continuou sua vida fútil, como sempre teve e não voltou mais ao hospital. Fez sua boa ação do dia e fez questão de contar todos os detalhes para todos, da emoção em que Roberta ficou ao vê-la e o tanto que apertara sua mão. E tentava chorar mostrando realmente a emoção, mas as lágrimas não saíam.
Roberta, mais uma noite sozinha, agora na UTI, entubada e aos cuidados de gentis enfermeiras, pensava na vida que teve. Aprontou muito, era danada desde sempre, inquieta, e se lembra de todas as vezes que sentira inveja das amigas lindas com cabelos longos. Ela era baixinha, rechonchuda e de cabelos ralos e curtos. Mas não era menos atraente do que as amigas lindas. Como ela mesmo dizia, se não nasceu linda, tinha que chamar a atenção de uma outra forma. E foi com liderança, ideias próprias e uma incontrolável coragem de enfrentar tudo e todos que conseguia conquistar alguns homens. E não era tão difícil se apaixonar por Roberta. Ela era do tipo mãezona, que defendia até os fios dos cabelos de quem ela achava que merecia defesa. Era justa até na alma e demonstrava isso para quem quisesse saber.
Naquela cama de hospital, com os tubos a invadirem suas narinas e aquela agulha a lhe perfurar a veia, Roberta apertou os olhos, gemeu e chorou. Achava que seria a hora. Morreria sozinha, como tinha certeza que morreria. Na verdade ela sempre soube que todos eram solitários, mesmo acompanhados. Coisas que acontecem com cada um, são coisas solitárias, impossíveis de serem descritas ou imaginadas. Pensou em sua avó, sentiu saudades e alívio. Se encontraria com ela quando chegasse do outro lado. Será que há outro lado? Ela acreditava que sim. Pensou em sua mãe e no sofrimento que ela teria quando a filha partisse. Ninguém sofre mais do que mãe. E pediu proteção aos céus para que confortassem o coração de sua mãe guerreira. Esta sim era a verdadeira guerreira!
Continuou de olhos fechados e começou a orar. Agradeceu a Deus pela vida, pelas oportunidades, pelos pais, pelos amigos sinceros, pela avó que foi antes dela para recebê-la quando chegasse lá, e agradeceu pela oportunidade que teve, mesmo que sofrida, por essa doença mortal. Teve tempo de rever pessoas, parentes, se despedir, desapegar, chorar... Só não suportava as pessoas sentirem pena dela por conta da doença. Todos morrerão um dia e nenhuma morte é melhor ou pior que a outra. Durante todo o tratamento ela não fez nada, além de repensar sobre sua vida. Não se preocupou com cabelos caídos, com olheiras e nem com picadas de agulha. Quem se preocupou mais foram os médicos que tentaram de todas as formas aliviar seu sofrimento. A dor é corporal, que logo se esquece, mas a dor da alma, de uma palavra indevida ouvida durante um momento em que está bem, uma traição, um descaso, um desprezo... Ahhhh, isso não tem cura. Dói pelo longo da vida. Roberta não era exceção de não passar por transtornos, era como qualquer pessoa que vive e que sofre. E em toda sua vida o que menos doeu foi essa doença que estava levando-a pouco a pouco, com dosagens homeopáticas, até o último suspiro.
Roberta fechou os olhos e não mais acordou.
Fim.
Clara Lúcia