A noite chega de surpresa e, contra vontade, ando de volta até o lugar onde costumo dormir. É nos fundos de uma casa simples, com três ou quatro cômodos e com a pintura descascando. Durmo nos fundos, já que não consegui encontrar as chaves da casa abandonada e todas as janelas tinham grades. Desde que meus pais morreram - eu devia ter uns seis ou sete anos -, era sempre pra lá que eu ia. Era silencioso, calmo, tinha uma piscina vazia, uma varanda com uma rede esquecida pelos últimos moradores e um céu estrelado.
Desde pequeno eu sempre sonhei em ser um astronauta e viver entre as estrelas, mas com o tempo superei aquela utopia que, com certeza, não era só minha. Enrolo-me com a rede e fecho os meus olhos. Logo pela manhã Grace virá me buscar para irmos brincar nas redondezas do Palácio de Inverno, e quero estar descansado.
Acordo com a luz do sol no meu rosto. É muito cedo, presumo. Todos os dias, lá pelas sete horas o sol começa a me incomodar, me obrigando a levantar e procurar um banho e comida. Ao lado da rede que me encontro, mantenho minha velha mochila com duas mudas de roupa e alguns trocados que eu dava um jeito de conseguir. Pego uma muda de roupa e dinheiro suficiente para um leite. Sei que, em uma padaria qualquer, se eu comprar algo me deixam usar o banheiro.
A padaria mais próxima de onde durmo é a um quilometro, e já que Grace deve estar dormindo tranquilamente no conforto de sua casa, vou andando calmamente. Quando chego lá e olho no relógio são 07h36 min. Escondo a muda de roupa no banco e sento por cima.
- Um café com leite, por favor - digo ao homem grisalho com avental branco que se aproxima de mim com a sobrancelha arqueada. Ele não responde nada, apenas assente e sai de perto de mim para preparar meu café da manhã.
Nenhum dos meus amigos tinha alguma idéia da minha situação. Não sabiam que meus pais estavam mortos; nem que eu não tinha onde morar. Minha única refeição era um mísero café com leite (copo pequeno) e alguns doces que meus amigos compravam no pátio do Palácio de Inverno. Eu gostava deles, mas não poderia conviver com o olhar de dó que teriam sobre mim.
O café estava frio, mas eu não podia pensar em reclamar sem ser expulso. Tomei tudo e agradeci. Pedi para ir ao banheiro e o atendente permitiu. Enquanto eu saía, meia dúzia de homens trajando terno preto entrou e se sentaram onde eu estava. Olhei desconfiado, me perguntando o que homens que podiam trajar roupas tão caras fariam ali, mas fui para o banheiro que ficava do lado de fora.
Uma porta de madeira sem trinco e um chão encardido. Caminho até a pia rapidamente, não posso demorar sem que percebam. Tiro a camisa e o short que uso desde anteontem e os jogo no chão. Abro a torneira e a água está gelada. Fico receoso quanto à temperatura da água, mas mesmo assim molho o rosto e deixo a água escorrer por meu corpo. Lavo debaixo dos braços e passo a mão molhada pelas pernas. Esfrego o rosto com o sabonete e os pés. Certifico-me de estar completamente limpo quando escuto três batidas apressadas na porta.
- Já vou - grito.
Tiro o sabão do rosto e dos braços, e as três batidas na porta se repetem. Pego a camisa que usava e começo a me secar, antes de vestir a roupa limpa. Seco a cabeça, os braços e quando estou secando minhas pernas a porta se abre. O homem grisalho está lá parado com uma vassoura nas mãos e uma feição cheia de ira.
- Aqui não é lugar para isso, seu pivete pervertido - diz ele atacando o ar com a vassoura. - Caia fora daqui, agora!
Abaixo e pego as roupas que estão no chão. Tento vestir o short azul enquanto pulo em um pé só para esquivar-me das vassouradas, mas uma acaba por me atingir e caio no chão. Não fico lá muito tempo e saio antes que ganhe outra. Ainda na calçada da padaria, visto o short e a camiseta e saio andando tranquilamente enquanto o padeiro grita palavrões contra mim.
Meu sangue fervia. Como um homem pode ser tão rude e mau assim? Eu não fazia nada de mais. O que será que ele pensou? O que quis dizer com "pervertido"? Droga, meu rosto ardia como se estivesse em chamas. Respiro fundo e continuo andando, tenho certeza que conforme vou para casa, isso passa. E vai passar!
Mas quando chego em casa ainda estou irritado. Deve ser 08h e Grace chegará a qualquer momento, não quero que ela perceba que algo aconteceu para me irritar. Vou até a janela suja na lateral da casa e olho meu rosto no reflexo. Está nitidamente vermelho. Pego uma pedra no chão e atiro contra a janela. A pedra passa por entre as grades e estilhaça o vidro da janela, mas não quebra.
- Por que você está jogando uma pedra contra sua própria casa? - Levo um susto e jogo a outra pedra que estava em minha mão no chão. Grace está parada ao lado da cerca do vizinho. Ela usa um vestido branco que lhe caía perfeitamente. Ela sorria, apesar de que seu olhar mostrava um pouco de medo e tensão. Mas mesmo assim, ela sorria. - Isso parece meio idiota!
Sorrio para disfarçar e chuto a pedra.
- Nada, estava só testando o quão resistente os vidros são - digo, sem muita convicção. Poderia apostar que ela não tinha acreditado, mas de qualquer jeito, revirou os olhos e caminhou em minha direção. Me cumprimentou com um beijo na bochecha e virou de costas.
- Está tudo bem, Theo? - Ela pergunta, ainda de costas.
Penso por alguns instantes. Como pode uma garota tão doce e delicada beijar uma bochecha imunda como a minha? Tudo no mundo esta errado, eu moro numa varanda de uma casa abandonada. Qualquer dia uma corretora de imóveis chegará e me expulsará daqui. Mas eu não conto para meus amigos porque gosto deles, porque tenho medo de ser rejeitado, talvez.
- Sim - digo, e damos alguns passos na direção da rua.
- Sua mãe está em casa? - Sinto a suspeita em sua voz e começo a desejar que alguma corretora de imóveis apareça logo e conte para toda a vizinhança idiota que um sem teto morava lá e então eu tenha uma desculpa para ir embora.
Começo a pensar em quais seriam minhas palavras de adeus para ela. Talvez eu nem ao menos precise. Talvez ela passe a me ignorar quando descobrir, ou talvez vai me odiar. Preciso viver e ver.
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Estrelas e a Terra
RomanceUm grupo de cientistas fascinados pelo céu vêem em um garoto sem teto, que não faria falta para ninguém, a chance de realizar uma das mais importantes pesquisas.