Capítulo único

138 8 1
                                    

Desde que eu era criança, a fantasia sempre me fascinava ao mesmo tempo em que me amedrontava. Ouvia diversos contos mitológicos, estudava por livre e espontânea vontade para conhecer deuses gregos e seus equivalentes romanos.

No entanto não parava por aí, oh como a astronomia me fascinava! Ligava as estrelas nos céus e admirava as constelações, esperava a melhor época do ano para admirar Órion, o Caçador, ou a minha favorita, Centauro. Localiza-la após saber onde se encontrava, logo acima de Cruzeiro do Sul não era muito difícil uma vez que minha cidade de infância permitia ter um céu limpo e estrelado todas as noites.

E noite após noite, eu não me cansava de admirar o Centauro, enquanto me lembrava das gravuras nos livros ilustrando-o com o braço erguido, na mão uma lança transpassando o peito do lobo, sua constelação vizinha.

Apenas isso costumava me saciar, até o dia em que o conheci. Ele era dez anos mais velho, sua genialidade era voltada aos desenhos, mas ele parecia saber um pouco de tudo, e foi dele que ouvi pela primeira vez.

"Você conhece a Caçada Selvagem?" perguntou-me em uma tarde chuvosa de inverno.

Ainda uma criança em toda sua mente ignorante e fantasiosa, balancei negativamente a cabeça, enquanto aguardava que ele me contasse mais uma de suas adoráveis histórias.

"Conhece Hela, filha de Loki, certo?" assenti, conhecia pouco da mitologia nórdica, mas os principais deuses eu conhecia. "Dizem que uma vez por ano, perto do solstício de inverno, os portões para o submundo se abrem. As barreiras entre este mundo e o outro estão mais delgadas e é quando podemos vê-los."

" Existem lendas que dizem que durante o solstício de inverno, Hela cavalga junto à Caçada Selvagem, seguida pelos guerreiros einherjar, montados em cavalos de nuvens. Os guerreiros junto com os cães do inferno passam recolhendo as almas dos mortos."

Um relâmpago cruzou o céu, sendo logo seguido por um trovão alto, aquela época era tão comum terem tempestades que apesar de me encolher pelo susto, acabei deixando de lado.

"Está ouvindo? Os trovões são causados pelo som dos cascos dos cavalos da caçada, eles estão por perto." sorriu de lado, como eu já havia dito, ao mesmo tempo que amava, tais contos me assustavam. Entretanto, ele sempre fora gentil e afagou meus cabelos "Não se preocupe, você não os verá. Vê-los quer dizer que a desgraça e a morte estão se aproximando, e está tudo bem."

Tranquilizou-me antes de ir embora, uma vez que ele só ficara cuidando de mim enquanto minha responsável não voltava. Minha imaginação sempre fora fértil, e naquela noite eu sonhei. Sonhei com belos cavalos, brancos, cinzentos e negros moldados de nuvens, mas tão ferozes que exigiam respeito, somente alguém que se curvasse a eles e obtivesse sua permissão poderia montá-los.

Sonhei com Hela, seu rosto tão belo, gentil e acolhedor que era indescritível, parecia ter uma luz própria. Me encantei de modo que não tentei olhar sua outra face, temia ver a face da morte. Ela me permitiu montar em um dos cavalos da noite, e seguíamos mais rápido que o vento.

Sonhei com cães semelhante a lobos, enormes com pêlos espessos e grosseiros, eles pareciam estar em chamas e incineravam todo e qualquer morto que estivesse tentando fugir.

E por fim, sonhei estar ao lado dos guerreiros einherjar, não pareciam mortos, estavam vivos, implacáveis, indestrutíveis, imortais. E quando suas lâminas ceifavam vidas, quando os cavalos corriam, ouvia o som dos trovões. Uma batalha ocorria no céu invisível aos olhos de quem estava lá embaixo.

E mesmo que anos tivessem se passado, por mais que a mitologia se misturasse às minhas lembranças, por mais que jamais voltasse a ver meu querido amigo, jamais esqueci.

Às vezes enquanto encaro o céu noturno, eu vejo o centauro e o lobo e fico admirada imaginado a eterna batalha entre ambos, em outros momentos, penso se mesmo no céu límpido a caçada está por perto.

De todo modo uma batalha visível e uma invisível aos meus olhos se desenrola todos os dias no céu, e sempre que alguém me pergunta o motivo de encarar tanto o céu, simplesmente respondo.

"Estou esperando."

E sinceramente espero que você, cada vez que estiver chovendo e ouvir os trovões, também lembre-se que a Caçada Selvagem se encontra por perto e aguarde o dia que a verá.

Caçada SelvagemOnde histórias criam vida. Descubra agora