Prólogo: A Mulher que Apontava

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Sobre a mesa que lhe servia de escrivaninha, pousou o livro, onde lia a história de uma mulher que lhe apontava o indicador, fazendo este livro parecer virar do avesso. Aqui era lá, e lá era aqui, livro e realidade se misturando, algo assim. Era apenas um livro, mas sentiu-se desconcertar um pouquinho. A mulher não deveria fazer assim, lhe passar a bola da situação.

Teve que parar, refletir.

Com um pequeno suspiro, olhou pela janela gradeada do cômodo. Havia prédios, vizinhos ao seu, um pouco além dessas grades. Antigos amontoados de tijolos, cuja argamassa, que os mantinha coesos e de pé, era mais feita de memórias que de cimento.

Lhe ocorreu, neste instante, a lembrança da noite em que sua velha TV passava o desenho animado predileto, e que assistia pouco antes de ir a uma festa, no bloco de apartamentos em frente, cheia de doces e alegrias, e que fazia o próprio ar noturno parecer cheio de luzes e boas promessas, como se invisíveis espíritos, vindos de outrora e do porvir, se encontrassem para tornar todas as coisas mais felizes e nítidas.

Mas houve tempo de medo também. Um dia ali choveu granizo, lembrava. Foi como mágica pura, apavorante e tremenda! Grandes, sonoros, pesados e sólidos pedaços congelados do céu, explodindo nas velhas janelas de madeira, rachando as vidraças ásperas, fazendo parecer que o mundo inteiro iria ruir. Naquela época nem se sonhava lugar tão humilde ter janela de alumínio. Aqueles bólidos de gelo, quicando no chão, feito gatos ariscos, e invadindo as casas das pessoas, eram espetáculo maravilhoso e trágico, ao mesmo tempo. Tinha certeza que houve, quase, uma nevasca, mas sua mente, agora adulta, murmurava que memórias são falíveis. O mundo inteiro, todo ele, em cada canto, parecia ter corrompido a memória do que era mágico, quando a idade adulta chegou. Então vai ver que não houve a neve, não no Rio de Janeiro, só um pouco de granizo... E que livros não falam com quem lê...

Só que agora a mulher do livro lhe passava a bola. Prosseguir com aquela história, para que ela não desaparecesse e para que, talvez, conseguisse trazer de volta a magia ao mundo. Caramba! Algo que desejou muito fazer, a vida toda, e que lhe escapou, atrás de obrigações, empregos e sobrevivência: criar. Mas dava insegurança. Você lê e se conecta aos habitantes de um livro, eles passam a ser parte de você, da sua vida, e aí você precisa levar eles adiante? Isso não deveria ser obrigação do autor?

Puxou o teclado do computador para si e ficou olhando para ele, longamente. Era sua chance de escapar ao circuito.

Ainda sobre a mesa, a mulher do livro ainda lhe apontava o dedo, e clamava por se fazer renascer nas memórias mágicas do mundo. Clamando, clamando.

E com o agradável som, "tic, tic, ti-tic, tic", do teclado do computador, voou pela grade de sua janela afora, a visão da sua mente zunindo rente ao paredão íngreme de um dos edifícios vizinhos, um voo ascendente vertiginoso, como se fosse um tipo de falcão intangível, em clara atitude de descaso quanto a frágil gravidade.

Ao passar como um foguete pelo quinto e último andar do prédio vizinho ao seu, girou sobre si com destreza no ar azul, olhou para baixo e, sob a forma etérea de um bólido de pensamento puro, chispou invisível pelo meio de pessoas e de construções antigas, fez uma vibrante volta sobre a avenida que era chamada de Brasil.

Mais que ler, além até mesmo de escrever, era preciso vivenciar desde seu princípio aquele livro que lhe acusava, com o dedo de uma de suas personagens em riste, de pensar em desistir da magia. Era preciso conduzi-lo e também conduzir-se dentro dele. Assim sendo, de etérea ave de rapina, tornou-se, em carne e penas, um pássaro real que, súbito, estabilizou o voo, e, planando, foi subindo uma rua que ganhava aclive a partir da Avenida Brasil. Planava cada vez mais devagar, suave e devagar, até que, em um lugar e em um momento próprios, onde a história deveria começar, encontrou os dois meninos, e os seguiu, sorrateiramente.

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