–O irônico é que você estava lá quando eu a encontrei. – George disse para os olhos que o encaravam na escuridão.
O frio toque do gatilho agarrava-se às articulações rígidas de seu indicador quando ele engoliu em seco e enxugou o suor com as costas da mão. As gotas quentes que escorriam por seu corpo começavam, aos poucos, a incomodá-lo, impregnando suas roupas e espalhando-se pelo tecido áspero da poltrona. O paletó já repousava ao chão junto ao cinzeiro de mármore abandonado e a gravata logo se juntou a eles, arrancada aos trancos da garganta ofegante.
Uma troca de olhares precedeu o diálogo unilateral.
–Não estava?
Do canto obscuro que se formava entre as estantes abarrotadas, a muda figura lá estava a observá-lo, inerte em sua contemplação incessante. Nada mais era do que um par de olhos a fitá-lo do negrume. O silêncio de sua resposta sempre se fazia ouvido.
–Quando eu a encontrei entre as caixas de sapatos do meu pai... Aquele desgraçado. – estourando os botões da camisa violeta, ele murmurou sem coragem de erguer os olhos novamente – Você estava lá desde o começo... Com esse seu olhar de merda, sempre me dizendo que estou errado. Eu não estou errado, porra! Eu faço as coisas certas! Eu sempre fiz!
A mão livre ergueu-se ao rosto, abafando uma fungada que despertou o pranto. O salgado de lágrimas e suor agora se misturava nas bochechas carnudas do homem, traçando seu caminho pelo queixo arredondado e palpitante peito, baleando-o.
–Eu fiz, merda! Merda! Então para de me encarar desse jeito!
A presença do estranho já não mais assustava George. Após tantos anos de ausência, seu súbito retorno parecia proposital. A gélida sensação de mariposas voando de suas costas o havia dominado como nunca antes em sua vida, a aceitação, porém, não tardou a suceder a breve paralisia do momento. Aquele, afinal, era seu companheiro de longa data.
–Você era para ser nosso segredinho. – George murmurou entre suspiros – Achei que tivesse me livrado de você.
Como que esperando uma resposta que nunca veio, o silêncio entrecortado por gemidos de pranto se estendeu pela noite, alongando gradualmente o espaço que se seguia entre cada tic do relógio.
–Eu estava procurando revistas para recortar ou qualquer besteira do tipo. Nunca imanei que ele a enfiaria na boca e puxaria o gatilho. – ao esfregar os olhos, o metal da arma lhe acariciou a pele irritada – Qual era o problema dele? Por que ele não foi homem e aceitou a vida que Deus ofereceu? Eu só tinha sete anos, porra!
O fitar constante apenas manteve-se de onde estava.
–Eu não estou errado, merda! Eu fiz as escolhas certas! Não sou como o babaca do meu pai que deixou mulher e filho por uma maldita insatisfação com a vida! Então para de me olhar desse jeito! Eu fiz a porra das escolhas certas!
O rosto molhado se encharcava cada minuto mais, secando aos poucos o interior já vazio do homem abatido.
–Ela nunca me contou porque ele fez aquilo. Ficou tentando me proteger, me esconder. Ela nunca me contou... Mesmo depois de tudo que eu fiz por ela... Eu vivi pela família. Foi o que ela me ensinou... Vivi pelos dogmas que ela me impôs.
Mergulhando nas sombras, suas palavras escapavam pela noite, esvaindo-se pela janela entreaberta do cômodo, sua única fonte de luz, seu único contato com o mundo exterior, ao qual já não mais fazia parte. Sua transgressão o havia maculado.
–Ninguém nunca me agradeceu por ter ficado do lado dela todos esses anos. Eu fui a única família que ela teve depois que aquele vagabundo morreu. – murmurou, apoiando o peso de seu corpo e sua consciência sobre os braços frios da velha poltrona – Mas ela preferiu se afundar na glória da igreja a encarar o mundo como ele é. Era sempre Deus que estava ao seu lado. Era Deus quem colocava o pão à mesa todos os dias. Era Deus que se matava de trabalhar desde os doze anos de idade para ajudar a pagar a maldita hipoteca! Nunca eu! Eu nunca prestei, afinal! Nuca fiz mais do que a minha obrigação! Sou um rascunho mal feito da porra do meu pai!
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Imaginário
Short StoryConsumido pela impulsiva insanidade de seus mais terríveis e profundos sentimentos, de arma em punho, George é obrigado a encarar seu companheiro imaginário de longa data no que parece ser a última de suas noites em vida. 'Imaginário' é o conto in...