Os Muezins gritavam: "Allahu, Akhbar, Allahu Akhbar... Deus é o Maior!" Deus é o Maior! Levantem para orar! Levantem para a salvação! Eu testemunho que não há outro Deus além de Alá. Eu testemunho que Maomé é seu Profeta! Deus é o Maior! Deus é o Maior! Não há outro Deus além de Alá!
Como era costume em Córdoba, cinco vezes por dia, a cada dia, acontecia aquela saudação. A exortação para a oração flutuava através do leve ar do anoitecer, elevada aos céus como uma prece inacabada e caía sobre a terra, a partir da Mesquita próxima ao palácio do Califa.
Jalila permanecia em pé sozinha e ouvia a entoação com calafrios estremecidos e inclinada sobre o queixo, espiava através do peitoril da janela que a separava dos que passeavam no pátio logo abaixo. Seus pensamentos e imaginações eram pesados com tristeza, ira e incômodas dúvidas e ela lembrava os acontecimentos chaves pelos quais sua família havia passado há cerca de um século e que a conduziram àquele lugar, com o propósito de vingança.
No décimo século do calendário cristão, Córdoba brilhava como a maior pérola entre as cidades do mundo civilizado. Era a capital da Andaluzia moura, que abrangia o sul da Hispânia (nome dado pelos romanos à península Ibérica) e em certas oportunidades, nos sete séculos de dominação muçulmana, seus limites chegaram a alcançar também o centro e o norte daquele país. Acima de tudo, esta cidade tinha sido forjada durante séculos por povos que conviviam em paz, tolerância e prosperidade, a despeito de suas diferenças na fé.
No entanto, a história nunca nos revela momentos perenes de paz e durante os anos, de 850 a 859, eclodiram algumas provocações de clérigos cristãos contra a fé islâmica, que nunca foi tolerante com blasfêmias. Esta série de manifestações contribuiu para a ansiedade dos emires de então, culminando com o episódio que, conhecido como os Mártires Cristãos de Córdoba, levou à morte por decapitação 48 acusados, entre estes um dos antepassados de Jalila.
A família de Jalila, de origem visigótica cristã, como muitas em Córdoba, levava uma vida dupla para evitar acusações de apostasia, aparecendo em público como muçulmanos, mas secretamente praticando o cristianismo no lar. O convívio de muitos anos no palácio, aonde chegara escolhida por Subh, a esposa do califa, na sua origem uma princesa do mesmo reino visigodo do norte, acabou desenvolvendo, no propício ambiente do palácio, uma intimidade com cumplicidade logo transformada em amizade sincera, um passo curto para o amor fraternal, que trouxe nuvens sobre seu projeto de vingança. A convivência com Subh no palácio, foi premiada com profícuos ensinamentos de literatura e poesia, ministrados pelos melhores escribas e mulheres educadas do califado, estreitando ainda mais os laços entre as duas mulheres.
A vida no palácio de Al Zahara, residência do Califa, era bastante movimentada e servia como retrato da harmoniosa convivência entre os diferentes exercícios da fé no califado. Assim, o médico da confiança do Califa era um judeu, a enorme cozinha do palácio, projetada para servir aos mais de duzentos ocupantes da residência oficial do Califado, entre soldados, pessoal de serviços, o harém, os eunucos além da família do Califa, somados aos suprimentos de diversos fornecedores, recebia regularmente doces e pastas confeccionados por um convento católico, que se situava nos arredores de Córdoba. Jalila cotejava então o contraste com os episódios de 850-859 e sentia, no espírito dos habitantes de Córdoba, quão frágeis eram os limites que permitiam a paz entre as diversas correntes de pensamento religioso que coexistiam no califado. Ela percebia que esta harmonia era passageira e o futuro iria confirmar suas suspeitas. Sua vingança tinha sido preparada por gerações, ao ouvir de seus falecidos pai e avô, uma promessa de juramento, bem nos moldes daquele que Aníbal havia prestado para seu pai contra os romanos, mas sentia que malograva. Ela se informara com o Chef da cozinha, um tipo agradável e falastrão tanto quanto competente, sobre todas as formas de envenenamento por ervas, que não deixavam rastro. Este nunca suspeitara, de que as conversas com aquela linda mulher, se inseriam em um plano de vingança. Mas agora, depois de conviver com o Califa e sua família, descobria que seu plano encontrava resistências em sua alma. Al Hakan I era um homem estudioso, que só se preocupava com seus filhos, com os livros raros, que se esforçava sempre em trazer para sua biblioteca particular e para as várias outras que organizou, com sua esposa, na cidade de Córdoba. Um governante totalmente avesso aos assuntos militares e de governo, os quais, sempre que possível, procurava delegar.
Jalila, finalmente, abortou seu plano, sem saber que quando Subh perdeu importância frente aos livros na agenda do Califa, as tarefas de cobertura que ela desenvolveria para que sua rainha se encontrasse a sós com Abu Mohammed, o famoso El Mansur, seriam o início da arquitetura da destruição de Córdoba pelo traidor da Andaluzia. Costuma-se dizer, que a vingança é um prato que se come frio, mas o que normalmente não é dito é que a vingança é um prato que se come frio, porque seu ingrediente principal é a paciência.
YOU ARE READING
Réquiem Para Andaluzia
Short StoryConto ambientado na Córdoba do Século X, durante a Dinastia Omíada, no reinado do Califa Al Hakan II. Dos quatro personagens citados, três são históricos, apenas Jalila é ficcional. Este conto foi publicado na Coletânea de Contos Escritor Profissio...