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 Aquilo tudo me lembrava um pouco quando a velha dos panfletos tinha me sequestrado; uma outra parte daquilo tudo fazia a antiga casa do incêndio vir na minha memória: quando tinha enxergado Grace na forma de um fantasma e, mesmo com as mãos impossíveis de tocar, lançando facas na minha pele e afundando com força a parte mais afiada dos objetos cortantes que ficavam trancados na gaveta. Aliás, as alucinações só não continuaram porque, numa fusão do lugar em que eu estivera ao lugar em que ocorriam a mim aqueles incidentes passados, ele se pôs a gritar o meu nome e me tirar do transe.  

Ninguém podia discernir seu semblante. Ninguém mais o faria. Vi que se levantou da cama, e começou a andar até a porta, e voltou, e tinha algo a dizer. Provavelmente não esteve planejando nem avaliando, mas sim esquecendo do que passeava minutos antes por sua mente. Depois de longos segundos predominantemente estático, quando finalmente voltou a se sentar, soube que tinha lembrado. 

— Aonde você vai? São onze da noite.

— Não vou voltar.

Segui, num movimento muito perto de correr, até a sala de estar... ele surgindo nos meus calcanhares, e pensei que fosse barrar a minha saída...
Ouvi me chamar, meio desesperado, tendo consciência de que não me pararia dali a alguns metros.

Mas eu parei, virei de frente para ele no portal e me assustei com a proximidade.

"Obrigada. Quero que você saiba que não é verdade aquilo que eu disse. Não é sua culpa. Não tem nada a ver com você. Realmente nada. Eu ponho a culpa nos outros. Eu vejo as pessoas assim, quando não têm absolutamente nada a ver. Eu não me preocupo se você quiser me culpar, porque tem esse direito assim como eu tenho de te desejar infinitamente de várias formas. Desejar que você não resolva me perseguir mais tarde; que essa porra toda já tivesse acabado quando tudo que eu posso pontuar é um 'etc' ao fim da linha. Mas, dessa porra toda, a que mais se destaca é que a única coisa que posso negar afirmativamente é que não tenho dúvidas de que o que mais desejo ainda é você."

Não sabia a quantas horas ficava dali, só que em algum momento avistei letreiros muito iluminados no meio da noite e segui centenas de setas, sinais muito imprevistos. Nem notei o quanto tinha andado.  Minha mão alcançou o puxador prateado da porta de vidro. O olhar do homem barbudo que sentava atrás de um balcão localizado no centro da sala se fixou muito decidido em mim, já que era cedo e ninguém mais caminhava no piso preto e branco. Parecia sonolento e um pouco duvidoso. Mas nada ali exalava abandono, quero dizer, era até bem tratado...  

Nessa hora, simplesmente corri muito rápido em direção a um único corredor estreito onde tive a impressão exata de que os pacientes ficavam internados, em diversos quartos. No final dele, lances de escadas que pedi ao Universo para não ter de subir. Abri cerca de cinco portas, despertando muitas pobres almas do sono, antes de me deparar com a menina pálida de cabelos apagados e longos que eu procurava, só tendo certeza porque nas mãos segurava um livro encapado que pensei já ter visto em algum lugar, talvez guardando o bilhete quando anunciou sair com Paul... mas não havia como parar ali... e talvez já tivessem chamado a polícia, numa altura dessas...

Não era a polícia, mas a porta entreaberta nunca chegou a se abrir por completo para que eu passasse e dissesse quem era, certificando se ela ainda fazia ideia de quem eu fui. O homem, acompanhado de outro bem maior, ameaçou me carregar para fora.

As sobrancelhas dele não mexeram uma única vez, eu lembrei. Ele não sabia meter medo em uma formiga, nem devia ter qualquer outro dom de persuasão... se o mundo precisasse de caras pesados e fortões, estátuas reais poderiam carregar a responsabilidade de construir nações. Intimidador, é? Era o que achava? Mas ele não sabia fuzilar. Não sabia dar a alguém a sensação de seus pés pisarem num chão que pode afundar ou se agitar muito rápido, se voltando contra você. Não sabia dar a alguém a sensação de que sobreviver é só um pequeno centésimo entre o sofrimento e a perda, que sempre a conquista da sobrevivência é após um grande perigo, repassando esse perigo pelo resto do tempo procedente. Além disso, transmitir o pensamento martelado firmemente no seu crânio, cravado na superfície da sua alma.

É o trauma.

 Fingi descer para a rua e dobrar a esquina, quando entrei para uma abertura, uma fenda meio apertada dando para as janelas dos quartos. Minha intenção era conseguir chegar lá no fundo, conseguir encontrar uma saída ou qualquer outra coisa para os andares. Mas havia uma, uma única janela, que não era coberta por uma cortina rendada e carregada, a única pela qual uma luz muito bonita, no alvorecer, tinha atravessado. E ela estava ali porque o livro negro não podia ser lido na mesma obscuridade gravada em sua capa: era preciso iluminação, e distinguir as palavras o minimamente possível...  

Estava debruçada sobre o livro, desatenta demais para tudo à volta, descrevendo movimentos repetitivos de frente para trás, de um lado para o outro, círculos muito doentios. Ela levantava os braços, do nada, comemorando e rindo agudamente, mas depois fazia o contrário e de repente chorava com eles estendidos, venerando uma entidade invisível. O livro, uma vezinha só, escorregou da roupa de cama e foi parar no piso. Foi nessa hora que sua boca desenhou palavras e ela falou uma perfeita frase, revelando que era saudável o bastante. Podia se proteger de quem quer que tentasse se aproveitar dela ali, transpassando a janela, e essa percepção fez meu choque ser tomado por um alívio.

Suspirei. Estando metade do meu corpo no interior do cômodo e a outra metade ainda do lado de fora, esperei a reação.

— Você... se perdeu? — Ela escondeu o livro num abraço apertado, me deixando em dúvida se queria proteger ou se sentir protegida pela capa ilustrada com pingos prateados e de cor meio roxa.

Não eram estrelas, as luzinhas minúsculas gravadas no livro negro. Eram galáxias...

— Não. Vim visitar você, mas antes preciso que me segure um tantinho. Pode fazer isso? — falei, o mais gentil que pude.

— E aonde ia? — perguntou, finalmente parando de desviar o olhar ao redor do cômodo e o fixando, em linha reta. Uma diagonal perfeita.

— Ao cemitério.

E contei. Contei desde o princípio dos princípios, sem afugentar nenhum detalhe. Tinha acabado de revelar, sem pensar repetitivamente, a maioria dos meus segredos a alguém dentro de um hospício.

Dentre inúmeras confissões, estava incluso o fato de que já tinha revelado os mesmos segredos a um desconhecido dentro do cemitério, por sinal.

Afastei as páginas do livro desenhado por galáxias cintilantes pelo hábito de movimentar as mãos enquanto explicava algo. Embora não tivesse completado a frase toda, li as notas escritas a lápis.

Fire&DesiresOnde histórias criam vida. Descubra agora