O livro.

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Deixei que meu corpo caísse sobre a cama. Algo se pôs entre o colchão e minhas costelas, então retirei do bolso interno do casaco algo que fez ela corar violentamente.

Um livro idêntico, exceto pela ausência das notas escritas a lápis e a adição de mais uma página. O livro que o pianista tinha escrito a mão. O livro que peguei para espionar os segredos dele, na mesma noite em que achei a carta e procurei o revólver. Só existiam dois dele.

E eu nem tinha chegado a narrar o ponto da história em que me deparava com um piano prateado na calada da noite...

— Mas não pode ser, ele tinha me garantido que era o único além da cópia que carregava — exclamou controladamente, observando a capa negra. Usando feições tão indignadas quanto as que aquelas enfermeiras carrancudas usavam.

— E ele tinha me garantido — retruquei, em voz alta — que nunca teve nenhuma intimidade com você. Assim como você também garantiu que não tinha dois irmãos mais velhos.

Roubei o livro das mãos dela, afundei no meu rosto e fechei os olhos, sentindo um cheiro mofado. Consequentemente, prendi a respiração. 

— Ele não é meu irmão biológico, meus pais o adotaram durante algum tempo. Assinaram todos os papéis. Fugiu de casa, eu ajudei — seus olhos castanhos, cada vez maiores pela surpresa, viajavam do amontoado rudimentar de páginas original à sua cópia.

— Ele me disse que tinha tocado no enterro do seu avô. Entende quando eu digo que fui enganada? — Voltei a contemplar sua feição, buscando um consentimento. Ela simplesmente balançou a cabeça, a atenção desfocada. Pegou a cópia e examinou a última página.

Gritou, não de horror. Gritou com ar de quem simplesmente tinha deixado escapar um grito.

— É sobre você, Sam. Precisa ler isso imediatamente.

— Se for um pedido de desculpas, nem adianta, já escutei vários e...

Uma súbita autoridade tomou conta do olhar escancarado da Shay à minha frente.

— Lê. Isso.

Não importa o quanto eu tente, acho que nunca vou aprender o seu idioma. E acho que você nunca vai entender o meu, não importa quantas vezes eu diga.
É por isso que eu escrevo, Sam.

Você é como a luz do luar colidindo com a luz do sol, levando-me até um caminho desafiador; como um jardim cercado de flores mortas que irradiam vida. Me faz sentir como numa queda livre de um prédio de novecentos andares: implorando por uma forma de me salvar.

E desde quando conheci os seus olhos, quis conhecer o que estava além deles, sem saber que poderia ser perigoso desvendar o rastro das suas lágrimas. Senti vontade de tomá-la em meus braços e acabar o seu choro, trazer a força que você nunca deixou fugir. Parece tão diferente e incerta quando me atrai para as sombras, mas eu não tenho medo de enfrentá-las. Estamos destinados a viver por eternidades e morrer calados, mas, antes que o pior aconteça, quero que o infinito dure bastante... Porque a nossa melodia acaba como no início.

Do nada, acompanhava o movimento peculiar. Um par de cadarços num bar escuro de San Francisco, à meia-noite, pensando em por que o homem-estátua não levou um soco merecido no saco depois de me expulsar pela segunda vez. Prometi voltar para buscá-la... ela não ficaria trancafiada num quarto doentio pelo resto da vida. Não enquanto ela estivesse tão ela, tão na dela.

Eu finalmente entendi o que ele esteve querendo dizer havia muito: nem o pior dos acidentes tiraria a razão dela.

Fire&DesiresOnde histórias criam vida. Descubra agora