Era moça de família, família tradicionalista. Moça educada para ser prendada, não letrada, prendada - afinal, meninas letradas afastam pretendentes.
Mal lembrava seu nome. Outrora teria tido sobrenome? Irrelevâncias... Passou a ser chamada "dona sobrenome do Marido".
Quando bebê, chorava ressentimentos do devir; chorava baixinho, compensando em lágrimas a carência de ruídos. Foi apelidada Sensível.
Sentia muito; sentia mundo.
N'uma noite qualquer, a moça - prostrada na cama que não assenhoreava -, esbarrou no que talvez fosse o quando. Sensível, instintivamente, sentiu algo além do tédio de si mesma.
Mantendo os olhos fechados enquanto se encarcerava n'um transe apático, Sensível passou a sentir a cama como extensão de seu corpo; alongamento de seus membros. Cada ranger era sua dor, cada parte de seus ossos se misturava à madeira maciça. Seus reflexos se tornaram mogno.
Em meio àquela utopia de sentidos, um imprevisto surgiu. Um soco na boca do estômago. Era a realidade à porta. Sensível se percebeu arfando como quem corre dos próprios desejos.
Tal imprevisto tinha nome e bigode. Não passava d'um homem buscando uma posição cômoda pra esquecer de sua jornada de trabalho. Trabalho que Sensível impiedosamente não sentia.
A julgar pela expressão - serenamente incomum - da mulher, seu companheiro deduziu que a mesma dormia e se deitou idilicamente ao seu lado. O moço sobrenome praticamente não a tocou, mas - inconscientemente - invadiu sua epifania.
Noutra ocasião, estava no banheiro, inundada até o pescoço, sentindo-se como espuma; sendo espuma como outrora fora leito. Quando precisava tirar o tampo da banheira, agonizava ao se ver descendo pelo ralo. Periclitava sendo as rodas d'uma bicicleta. Era as sombras excitadas das penumbras. Em dias nublados, comungava do ciúme das nuvens: a sós com a lua.
O sentir passou a ser ópio.
Era exagerada. Sensivelmente exagerada. E assim gostava de ser. Ao menos aparentava gostar.
Agora, quando chorava, não mais se permitia a própria dor. Sentia-se lágrimas. Quando estava a cerzir, não se dava o luxo de ficar colérica ao errar pontos; escolhia a felicidade obscena de ser linha e fluir com novelo que a dominava.
Quanto mais sentia, menos se sentia. Essa mulher indiferente à mulher que talvez tenha sido, absorta no antro que era, se tornou estrangeira em si.
Conversações - paulatinamente - se dissipavam. Invés de carne, Sensível carregava palavras envoltas nos ossos. Sentia cada sílaba cruzando seus dentes. Era palavras e a misericórdia de desgastá-las.
Sensível sentiu o padecer que seu corpo sentiria se optasse por ter um filho, antes mesmo de parir. Sentiu o ranger dolorido do sofá ao se sentar grávida sobre ele, antes mesmo de engordar. Sentiu-se vômito agonizando por esgotos antes de ser náusea. Pressagiou o peso de dois corações e sentiu que o universo não suportaria a extensão d'um sentir tão vivo quanto o seu.
Como as folhas deixam as árvores, Sensível se tornou alheia às pessoas. Entre boatos e rumores: se distanciou do marido, dos vizinhos, dos amigos, da família e dos filhos que não teve.
Perdeu o que pôde perder e ainda sentia. Ao sentir: era inteira. Vivia uma vida estável como a morte.
Sobrevivia aliviada. Ao menos aparentava sobreviver.
N'uma rotina náufraga e segura, Sensível não sentia nada, mas, inda assim, era capaz de sentir tudo.
