O Choro

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Havia alguém chorando no andar de baixo, era tudo que Ilda conseguia pensar em seu leito, na madrugada, assombrada pela insônia que a obrigava escutar o que seus velhos ouvidos não queriam. Era um choro abafado, com suspiros longos e penosos. Aquilo a asfixiava.

A noite que precedeu tal tormento foi de costumeira monotonia, com lampejos de nostalgia de uma juventude com mais objetivos. A mansão herdada de seu pai, que antes abrigava à diversas pessoas, estava confinada a sustentar uma única, a "bruxa Ilda", como a vizinhança costumava retratar aquela mulher, que optara por não participar do engenhoso trabalho de viver em sociedade.

A senhora, contudo, não se importava com que diziam. De forma alguma, quebrava sua rotina. Cedo comprava tudo que precisava e preparava as suas refeições, variava seu tempo lendo livros antigos ou ouvindo um velho rádio que seu ex-marido comprara.

Seu frágil corpo tremia levemente e, apesar do clima abafado de seu empoeirado quarto de luxo, sentia um frio febril. Pegou as cobertas e colocou até a altura do queixo, segurando com as duas mãos como se fosse um escudo. Sua mente trabalhava freneticamente em diversas possibilidades para que sua audição estivesse apenas sendo ludibriada. Seus olhos refletiam isso, focando diversos cantos rapidamente, tal qual um R.E.M.¹

Ela sabia de onde vinha o choro, tinha certeza, e era exatamente isto que mais a apavorava. O último quarto do andar de baixo. Não ia ali desde que seu filho falecera. Aquele lugar era dele. Ilda sabia, detalhadamente, o que havia no cômodo, cada brinquedo, o guarda roupas colorido, decoração das paredes, tudo, embora não tivesse coragem de vê-lo há anos.

O som do angustiante pranto não era alto, porém, ecoado pelo silêncio que a imensa casa proporcionava, funcionava na cabeça da velha como uma gota de água que cai sobre uma pedra de gelo. Ela não podia suportar mais. Levantou-se, sem calçar as desgastadas chinelas e ligou o aparelho de TV de tubo. Pôs no último volume. Parou um pouco para considerar se aquele sofrimento ainda era audível e depois de constatado que não, deitou-se novamente.

O canal que ela sintonizara havia um homem em pé que gritava para várias pessoas o que elas deveriam fazer em suas vidas, e elas aceitavam, ajoelhando-se para ele. Ilda ficou entretida com aquele comportamento e isso a levou novamente ao sono, mas sem tardar, as lamentações voltaram a intimá-la a sair do seu descanso. Desta vez, os berros do homem da TV uniram-se aos sons que vinham de baixo, perturbando ainda mais a idosa.

Ela desativou o som do aparelho e se cobriu até a ponta da cabeça. Falava para si mesma o quanto estava sendo tola, aquele era um dos truques do medo, como quando enxergamos formatos estranhos feitos por sombras. E aquele ruído poderia muito bem ser um desses casos, amplificado pelos tormentos de seu passado.

A língua de Ilda, contudo, não era capaz de frear seus instintos. Aquele choro despertara ela de outro sono também: o de sentimentos há muito colocados sob a penumbra. E aquilo, sim, a aterrorizava; muito mais do que pela audição, seu íntimo padecia por todos os sentidos.

Ela imaginava inúmeras possibilidades perturbadoras, mas queria se ignorar, embora fosse impossível. Pensava, inutilmente, que se afastasse essas ideias nefastas o choro iria junto. Não queria, em hipótese alguma, admitir o passado, muito menos refletir sobre ele. E aquela noite a estava levando de novo para os momentos indesejáveis.

Levantou-se da cama, olhou para a porta do quarto e quis descer e acabar de vez com isso, mas rejeitou a ideia assim que a concebeu; não devia encarar aquilo e nem podia. Ilda não tinha certeza se o abalo que sofreria enfrentando, ainda deixaria algo. Pois o tempo já levara muito de si. Foi em passos rápidos até a porta e a trancou.

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⏰ Última atualização: Jul 30, 2016 ⏰

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