Lá está. Não a conheço, nem ao menos já a vi um dia. Mas sei que é ela. E, desta vez, como há muito não me ocorria, uma mulher.
Seu brilho ainda não é intenso, é sonso, quase imperceptível. Não fosse pela habilidade adquirida ao longo desses anos, eu poderia deixá-la passar em branco, como em mais um episódio egoísta da morte. As auras possuem vários tons, e eu consigo ver todos, assim acredito, e essa, logo ali à minha frente, vejo em perfeita sintonia junto ao corpo que a emite.
Poderia sair correndo em sua direção e contar tudo o que sei, abraçá-la com toda a força que pudesse desprender e segurá-la ali, parados, quietos, impedindo que seus passos a levassem ao seu fim. Mas isso seria uma experiência que não desejo mais. Me faria recordar o velho homem da loja de tabacos, quando meus sentimentos culposos me corroeram como um inseto em uma Drosera, como se naquela manhã eu fosse o responsável pelo fim do pobre coitado. Fora terrível vê-lo agonizar aos meus pés, segurando minhas mãos e olhando profundamente em meus olhos. Será que sabia o que sou? O que vejo? Se soubesse, teria que se contentar em falar aos que um dia se foram também, quem sabe em um daqueles jardins floridos como pintam os mais otimistas, ou ainda, em bosques de trevas caso tenham sido uma má pessoa em sua medíocre vida carnal. O bem e o mal. Ou um, ou outro. O que me resta apenas é segui-la, deixar que a morte a guie em seus últimos passos, e eu, como um mero expectador, contentar-me em assistir tudo isso em silêncio, em uma briga sináptica com minhas cordas vocais.
Ela atravessa a rua, talvez atraída pelas vitrines das suntuosas lojas de sapato que se enfileiram daquele lado. Atravesso também, mas vou por entre os carros, motocicletas. Sei que posso, simplesmente por saber não ser essa minha hora. Não vejo minha luz, e isso me conforta, me imuniza. Queira Deus que eu esteja certo.
Continuo a segui-la, e agora presencio seu brilho mais de perto, mais intenso. Nesses anos todos, criei para mim uma regra: maior o brilho, mais próximo ela está. E essa mulher, que desfila em saltos altos seu exuberante corpo desejado pelos olhares dos transeuntes, irá morrer em breve.
Como é jovem! Poderia sentir pena não fosse por ser algo a qual já me acostumei. Imagino assim ser o sentimento de um médico que passa o dia cuidando de feridas e ao final da tarde, ainda com seu manto alvejado, delicia-se com um farto pedaço de torta. Já presenciei crianças, casais, famílias inteiras, todos morrerem. A juventude desta moça, acredite, não irá me tirar o sono mais tarde.
Enquanto a sigo, lembro-me de Shirley, meu amor doente. Talvez pelo cabelo vermelho, ou quem sabe, pela saia curta, não sei ao certo. Conheci-a nos anos noventa, mesmo nunca tendo sido notado por ela. Sua voz e beleza coabitam um espaço único, talvez em uma daquelas combinações matemáticas que tendem à improbabilidade. Existem belezas únicas, como as orquídeas entre as flores e os ipês entre as árvores. E Shirley é assim. Isso é estranho, eu sei, mas realça os meus desejos. A perfeição de uma pessoa só é alcançada enquanto não se a conhece e ela, Shirley, será sempre perfeita para mim.
Agora a moça se põe em passos curtos, como um barco que quisesse ancorar. As vitrines ficaram maiores, as cores mais atrativas. É natural. As mulheres precisam disso. Sua aura também mudou. Veria se estivesse a cem metros distante. Contorna todo o seu corpo, de um calcanhar a outro, mostrando tons mais cintilantes na altura da cabeça, tal qual os santos pintados em óleo aos olhos de um artista que acredita piamente em sua santidade. Pergunto-me se os pintores também as enxergam, as auras, mas nunca fiquei mais que poucos segundos pensando nisso.
Ela para. Faço o mesmo. Viro-me à uma vitrine e me ponho a contemplar vestes as quais nunca usarei, mas é preciso disfarçar. Se ao menos tivesse uma mulher para presentear com um destes. Nenhuma das tantas que conheço seria merecedora de peças tão belas. Olho de soslaio, percebendo mais o seu brilho do que seu corpo, e aquela sensação estranha que meu vocabulário intitulou como "tremor" me toma mais uma vez. Será agora. Aquela pobre moça, cega pela vontade em tornar-se mais bela, ocupando sua mente com as lindas estampas do outro lado do grande vidro, irá morrer ali, naquele local.
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Gregório - o brilho das auras (livro 1) #wattys2016
Mystery / ThrillerAinda quando jovem e após testemunhar um crime, Gregório é surpreendido por adquirir a habilidade em poder visualizar o brilho das auras emitidas por pessoas que, nos instantes seguintes, são certeiramente tocadas pelo beijo da morte. Hoje, já próxi...