A densa chuva açoita impiedosa a carcaça metálica do táxi que decidi tomar. Apenas rabiscos disformes são o que consigo ver pela janela em movimento, vindos de todos os lados em forma de rajadas, e a única luz que percebo é a do homem ruivo que se encontra sentado a pouco menos de um metro à minha frente. Em resmungos, digladia-se com o para-brisas que o vence a todo tempo ao insistir em permanecer embaçado. Palavras de baixo calão em um sotaque o qual desconheço me divertem neste momento. Minha sensação de calmaria voltou, e assim entendo que estou jogando da forma como a morte escolhera. Às vezes acredito encontrar a felicidade apenas quando chove. Lembro-me de meu amor platônico, Shirley, novamente.
São quase duas horas de viagem pelas ruas engarrafadas até à entrada principal do corredor da alameda. A última vez que lá estive, e já não recordo há quanto tempo fora, minha covardia vencera não me permitindo ao menos descer do carro e afrontar o local onde tudo começou, fazendo-me contentar apenas em contemplar a apagada entrada do velho bar, por horas, sem ao menos adentrá-lo e respirar mais uma vez seu ar canceroso. Parecia reformado, em pintura mais viva, embora intimidante como aquele que me aparecera durante muitas noites ao longo de todos esses anos, trazendo em forma de pesadelos, raramente em sonhos, o episódio que presenciei na longínqua noite tempestuosa.
A chuva se tornou ainda mais severa, e as sombras do passado se mostram menos distantes. Hoje sei que ser covarde de nada adiantará, e para que possa terminar com tudo e compreender o que sou, terei que entrar, por mais uma vez, pela porta de madeira que nunca mais saíra de meus pensamentos.
***
A noite é linda quando envolta pela água, e as luzes dos postes tornam esse efeito ainda mais amigável. Sigo por uma rua lateral à alameda, e não fosse o relógio que se estende à minha frente indicando a posição no espaço-tempo em que me encontro, poderia jurar estar caminhando como aquele mesmo moribundo que por aqui transitava, escondendo sua garrafa de bebida em um surrado casaco esverdeado, com poucas moedas no bolso e um futuro tão incerto quanto ao próximo passo que estaria prestes a dar. As mesmas lojas, as mesmas casas. Olho para o céu em busca de estrelas, mas não as encontro para maquiar as lembranças em que agora me vejo. Com a chuva, entrei há anos naquele bar, pobre e bêbado, e com ela batendo em minha face retorno mais uma vez às suas dependências, rico, destinado, sem saber ao certo se não queria estar, ao menos desta vez, apenas em busca de um local seco para beber uma garrafa que furtara de meu finado pai.
Os paralelepípedos ao chão indicam que estou a poucos metros de alcançar meu destino. Ainda soltos, sujam com uma fina lama as partes inferiores de minha calça, e os meus sapatos, tão lisos, custam a me manter em pé. Cubro parte de meu rosto com a gola do casaco entreaberto, sentindo o frio espinhento na altura dos olhos, apertados devido ao vento frontal. O cheiro do mar me encontra novamente, e a chuva que me toca faz-me sentir como se estivesse imerso nele.
Meus passos me levam até uma apagada esquina, de onde consigo ver as várias ramificações que partem de um chafariz central, e que rumam a sentidos distintos. Daqui, consigo enxergar meu passado, em forma de construções, artes, ruas. Destas, uma abre o caminho para um extenso corredor de bares, que em dias de noites límpidas, mal se consegue avançar um único passo sem que seja tocado por alguns dos que ali se aglomeram para se embebedarem e nutrirem os seus espíritos jovens.
A entrada da velha alameda em quase nada mudara, salvo pelas reformas destinadas à preservação dos patrimônios históricos que modelam a paisagem local. Datadas quase todas do século dezessete, compõem-se em um conjunto de obras que inegavelmente agrada aos olhos de quem a atravessa.
O grande chafariz é considerado por muitos o marco inicial, um ponto de encontro, onde os anjos urinam dos céus enquanto dançam com os seus corpos pétreos, da maneira mais pura em que Michelangelo pudesse ter expressado um dia. Não preciso de muito esforço para me ver ali, com os pés apoiados à sua base, com uma garrafa em mãos e jogando palavras com os poucos amigos que tivera em minha juventude. Lembro-me de que falávamos muito sobre música, influenciados pelo movimento repentino vindo de Seattle, e como ele nos salvara do lixo sonoro que ainda resistia como sombra negra dos lastimáveis anos oitenta. As máscaras e os tecidos coloridos teriam sido vencidos, e as calças sujas envoltas por flanelas tornaram-se a nova bandeira, onde a melancolia e uma vida viciada passaram a ser difundidas em forma de belas canções. O rock passara a ser feito novamente com rebeldia, e a década que dali se abria traria para o cenário mundial novas lendas a serem eternizadas por suas músicas e atitudes politicamente incorretas.
E então, depois de anos, novamente o vejo.
Suas paredes altas, em um amarelo apagado, talvez mais sujo, emitindo por suas janelas um tímido fulgor vindo de dentro. Assombro-me mais uma vez, mesmo com meus olhos cerrados devido ao vento cortante.
A morte está aqui, eu sei. Nunca a senti tão perto como agora. Sei que me observa, aqui do lado de fora, e posso imaginar seus finos dedos ósseos a me convidarem a atravessar mais uma vez aquela porta.
Venha, Gregório! Você está quase lá. É o que deduzo estar ela em sussurros, ou realmente está, e minhas deduções nada mais são do que a pura expressão de sua voz dentro de mim. Preciso ter a certeza, e sei que não será aqui, disputando com as estátuas um espaço debaixo da chuva que agora começa a se render. Gotas suaves e geladas deslizam à minha frente, mas apenas as vejo, pois seus toques já não fazem mais diferença sobre o meu corpo visivelmente encharcado.
Sigo em passos leves, como se não quisesse acordar a noite. Estou congelando, mas a imagem crescente da porta de madeira me faz ignorar tais sensações menores. Estou a metros de entrar novamente naquele lugar, onde visualizei pela primeira vez a aura, assisti a um assassinato brutal e, ainda, encontrei uma pessoa que não fora notada por mais ninguém naquela noite. Posso estar enganado, talvez ficando louco e nada disso estar acontecendo como ocorre aos esquizofrênicos, mas uma certeza insistente toma conta de mim desde o momento em que compreendi que essa é mais uma jogada da morte, e, embora sabendo que não posso vencê-la, ao menos poderei encontrar as devidas respostas sobre o que há muito me questiono.
Como uma criança assustada, que aprendera naquele momento a ensaiar seus primeiros passos, alcanço por fim a grande porta e, lutando para não hesitar, ponho-me a atravessá-la, tal qual fizera no dia em que fora amaldiçoado.
***
VOCÊ ESTÁ LENDO
Gregório - o brilho das auras (livro 1) #wattys2016
Misterio / SuspensoAinda quando jovem e após testemunhar um crime, Gregório é surpreendido por adquirir a habilidade em poder visualizar o brilho das auras emitidas por pessoas que, nos instantes seguintes, são certeiramente tocadas pelo beijo da morte. Hoje, já próxi...