Norton

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Norton era um merda. Não há maldade em se dizer isso, ele sabia. Recordava disso todos os dias ao se pesar no banheiro após escovar os dentes, ou quando a esposa enumerava no café da manhã as diversas qualidades que os vizinhos possuíam ao contrário dele. Ele nem tentava mais participar dessa conversa, porque no fim descobriu que nunca fora uma conversa, apenas sua flagelação matinal costumeira por ser um merda.

Norton tinha dois empregos. Nenhum que exigia grande vocação. Um era de vigia noturno do estacionamento de uma rede 24h de supermercados, o outro era o de atendente de call center. Nesse último, diferente de seus companheiros de trabalho, Norton não era jovem, nem universitário e tampouco tinha desejo de procurar um outro emprego. Sério, ele já tentou isso, mas nunca fora grande coisa em nada. Ficar ali atendendo as reclamações das pessoas até que lhe dava um certo alento. Afinal, comprovava que havia pessoas tão infelizes quanto ele no mundo. Além disso, podia ter pequenas vinganças contra a humanidade. Vez ou outra podia "perder" as ligações quando alguém ficava muito exaltado, ou mesmo transferir alguém para setores errados se exigissem falar com o gerente. Mas até isso lhe foi tirado, quando recebeu a notificação do excessivo número de reclamações de seu atendimento. Só não foi demitido porque já era o de menor salário da empresa e ainda aceitara a redução de seus ganhos e horas em 25%. Um merda.

E era assim todos os dias.

Mas um dia foi diferente. Sua esposa levou os filhos para uma festa de aniversário (um convite totalmente inesperado; eles nunca recebiam convites para nada) e ele pôde ficar em casa sozinho zanzando pela Internet. Logo procurou pelos sites pornôs, mas não era bom em encontrá-los, só achava aqueles que tinham de colocar cartão de crédito. Foi clicando em banners atrás de banners, indo cada vez mais no interior das páginas obscuras e distantes da Internet, até que não soubesse mais como tinha chegado até ali, que chegou naquela página azulada com as fotos de pessoas fantasiadas de super heróis na capa. O título dizia, "Leia este edital e mude sua vida, seja um super". Pensou em fechar o navegador e ir tomar banho, mas a silhueta de uma daquelas pessoas de uniforme parecia muito com a sua. Norton clicou no banner.

O edital era simples e direto:

"Se a sua vida é uma merda, se se sente desajustado, depressivo e oprimido pelo sistema que não o contempla, esse trabalho é para você".

"Vivemos em um mundo em que nada nos cabe, tudo foi feito para que outras pessoas pudessem usufruir das benesses da vida. As medidas das roupas, o espaço nas poltronas, as roupas no trabalho, os sonhos americanos e a esperança da felicidade são produtos daqueles que dominam o sistema, que são coniventes com as injustiças diárias que mantém o seu domínio sobre nós".

"'O Real Life Superhero' acredita que chegou a hora do fim das ilusões e que o mundo deve ser finalmente de todos. Buscamos a justiça e a igualdade, lutamos contra a opressão da realidade dominante e a injustiça institucionalizada. Você pode ser o nosso soldado nessa luta. Preencha o formulário abaixo e você receberá imediatamente, sem custos, um uniforme de super herói aleatório do nosso fornecedor, manual de instruções, sua arma, seus óculos de realidade aumentada e o seu distintivo. Leia atentamente o edital, você terá um dia para desistir de sua inscrição no Real Life Superhero. Mas corra logo, as vagas estão acabando".

Norton leu de novo a parte que dizia "sem custos" e então escreveu seus dados e clicou em enviar.

A campainha da casa tocou quase no segundo seguinte.

Norton levantou do chão depois do susto e foi ver quem era. Havia um pacote no chão do lado de fora da casa com o seu nome e endereço impressos. Norton olhou em volta procurando o entregador, olhou para cima para ver se via o drone, já havia ouvido falar que a Amazon iria começar a fazer esse tipo de entrega, só não sabia que seriam tão rápidos. A FedEx estava ferrada com esta concorrência. Por fim, pegou o pacote e entrou. Colocou-o sobre a mesa de centro e o abriu com cuidado com a faca de pão da cozinha. Lá dentro havia um uniforme verde e preto de super herói, com capa e máscara, uma arma futurista num coldre, um par de óculos de sol e o manual. Folheou o livreto, que era todo impresso como se fosse uma revista em quadrinhos, como aqueles folhetos de segurança para passageiros de avião. Ou seja, à prova de antas. Ele mostrava como vestir a roupa e a destravar a arma, instruía como colocar os óculos de realidade aumentada e frisava bem a mudança de vida que haveria ao aceitar vestir aquele manto e defender a honra dos excluídos. "Não havia volta", dizia.

Norton deu uma risada e resolveu ir assistir à TV. Depois mostraria aquelas coisas aos filhos, eles iriam adorar.

Zapeou pelos canais. Queria encontrar algo que fosse a sua cara, qualquer coisa que gostaria de assistir sem a influência de uma terceira pessoa detentora do controle remoto, que nunca era ele. Passou pelas novelas, pelos canais de desenhos e até mesmo pelos de anúncios de aparelhos e jóias, que sua sogra tanto adorava ver quando estava em sua casa. A raiva que sentia por não encontrar nada que fosse de seu interesse o fez trocar os canais freneticamente até sentir dores nas falanges. Nada fora feito para ele. Exausto daquilo tudo, jogou o controle no outro sofá e vestiu a roupa.

Ela era perfeita, confortável e reluzente como látex. A arma era balanceada e tinha um ar mortífero, apesar de ser provavelmente só de plástico e fazer barulhos engraçados quando se apertasse o gatilho. Tinha chegado a hora de colocar os óculos e sair para a rua. Era essa a regra, vestir o manto e sair contra o sistema. Norton respirou fundo, colocou os óculos e foi para fora de casa. Trancou a porta e colocou a chave em baixo do carpete.

Desceu a rua do bairro sentindo os utensílios do cinto de utilidades batendo em sua coxa. Os óculos deixavam tudo esverdeado e um dos seus efeitos era enaltecer algumas cores ou luzes dos carros e casas. Era realmente bem legal. Não demorou muito para que as crianças o descobrissem. Norton sentiu um calafrio, mas para sua surpresa não ouviu piadinhas, ou ofensas. As crianças o acompanhavam admiradas por estarem com um super herói. Elas riam e pediam para ficar ao seu lado, falavam dos 'crimes' cometidos pelos irmãos e da falta de sobremesa em suas casas. Quando chegou ao final da rua, antes de entrar na avenida principal do bairro, os taxistas vieram lhe apertar a mão. Estavam contentes pelo bairro finalmente ter uma pessoa como ele para lutar pelos oprimidos. Algumas mulheres vieram até ele de dentro das lojas de departamento e perguntavam o seu nome e se podiam ver por baixo da máscara. Norton disse que não, que tudo aquilo era um segredo para defender sua família e tal. Todos ficaram contentes e deixaram-no passar. Em todo lugar que ia, era cumprimentado e as pessoas vinham lhe oferecer doces ou cachorros-quentes. Os carros paravam e as pessoas saiam deles para tirar fotos de celular com Norton. Até mesmo os policiais paravam para trocar uma ideia. Nem em seus sonhos mais loucos, Norton poderia esperar algo tão surreal. Por que alguém devolveria aquilo tudo antes de completar um dia?

A resposta veio com um grito. Ninguém mais parecia ter ouvido, mas para ele tinha soado como tambores em seus tímpanos. Olhou ao redor e viu do outro lado da rua cinco pessoas bem vestidas, com rostos de caveira e em tons verdes faiscantes arrastarem uma garota pela rua. Quem estava na calçada esperando um ônibus, ou simplesmente conversando com o carteiro, saía da frente do grupo de forma automática, ora subindo os degraus do ônibus, ora se despedindo um do outro e partindo sorrindo cada um para o seu lado. Os seqüestradores seguiam sem ser incomodados, rindo e fazendo planos em direção da área residencial. A menina gritava e esperneava, mas ninguém a ouvia ou via; somente Norton! "Os óculos!", lembrou ele tirando-os. Subitamente não conseguiu mais ver as criaturas. Recolocou-os e os gritos voltaram. Seria uma ilusão? O que era ilusão? A menina estava em perigo, ou não? Se estava, Norton percebeu que só ele poderia ajudar.

"Com licença", disse ele para uma senhora que pedia seu autógrafo e depois saiu correndo pela rua. Passou pelos quintais dos fundos das casas e ao invés de ir pela porta da frente, como qualquer herói, entrou pela clarabóia do banheiro. Pé ante pé, foi até a sala, ouvindo os movimentos dentro da casa. Eles já haviam retornado. Era agora ou nunca. 

Norton se agachou e foi até a mesinha de centro, pegou o pacote e foi para o quarto, vestiu o pijama e guardou o uniforme, a arma e tudo mais na caixa. Depois de ter lacrado tudo, arrependeu-se de não ter ido antes até a cozinha e ter dado uma boa olhada na esposa e nos filhos com os óculos. Dane-se. Melhor não perder tempo, faltava somente 23 horas para devolver a roupa. Melhor não correr nenhum risco. Nunca mais. A vida era uma merda, sendo super ou não, mas era sua e só tinha uma.

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⏰ Última atualização: Aug 06, 2016 ⏰

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