— Barato, Barato... Barato! ... Desculpe te incomodar... mais uma vez, mais essa vez. Eu sei o quanto te custa e o quão injusta sou contigo a cada vez pois você é tão bom pra mim! Mas é que dessa vez é sério. Nós somos tão diferentes um do outro, fomos criados em ambientes tão distintos, vemos o mundo de diferentes perspectivas, você e eu. Mas algo nos uniu e esse algo precisa ser entendido, pensado, refletido e definido pois o que nos une tem que ser mais forte do que o que nos distancia... e o que é essa coisa, afinal?
— Mas eu não aguento mais uma vez esse papo. Quantas vezes preciso responder a isso, Barata? Você me perturba, Barata, com seus problemas pequenos, mesquinhos e cotidianos. Essa é a maior distância entre nós e você, em sua posição, ao invés de tentar superá-la, fica sempre nos lembrando dela. Quando se uniu a mim só te aceitei porque achei que queria evoluir, mas às vezes parece que quer me arrastar para o poço com você, para junto de sua gente. Eu sou diferente, você sempre soube! Me deixe voar em paz.
— Sim, eu sei! Você é um Barato, altivo, evolutivo: Você joga suas pernas para trás quando voa porque quer se libertar; e eu... eu sou apenas uma Barata, olho tudo de baixo, só vejo o fundilho de todas as coisas do mundo: nos meus pequenos voos jogo minhas pernas para frente, pois seu voo é libertar-se de tudo e o meu é agarrar-me em alguma coisa.
Mas um dia você disse que me queria e desse jeito mesmo. E eu acreditei. Só que a minha situação te incomoda toda vez que eu mostro a Barata em mim. Ora, como é, afinal, que você me enxerga, não é como Barata? Como o que seria, afinal? Barata é o que sou, só isso, a sua Baratinha, você também sabia desde sempre, se não me queria Barata, é porque viu algo além de mim que não era real e nós sabemos que o além-mundo não deve ser valorizado em lugar do mundo e que a além-vida não deve ser vivida e que a além-Barata nunca será melhor do que a Barata. Seguindo esse conceituado raciocínio sabemos que a além-Barata nega a Barata em si e, por isso, não tem o melhor da Barata; justamente o que é mais Barata, no além-Barata não há e, não sendo também outra coisa diferente, ela não é nada. Por isso insisto tanto nisso: preciso saber se me enxerga como sou, e se sim, se sou suficiente pra você. (E disso você nunca me convenceu!)
— Mais uma vez, e só porque sei que não me deixará em paz até que responda, e como te disse já mil vezes: SIM! Eu te vejo exatamente como é. Nunca quis mais de que você é, mas você mesma me disse um dia que queria ver o mundo de outra altura, sair do fundo para vir à tona, queria alçar novos voos e isso me fez feliz! Não prometeu nada a mim, mas eu a você quando te dei a mão e te levei comigo. Por isso digo que esse além-barata de que fala não é algo que vem de mim, mas de você própria. Se você quiser ser Barata, ótimo pra mim, mas se quiser ser além-você, te ajudo e apoio.
— Magnânimo como sempre! A magnanimidade é digna de você, Barato. Só tenho que lhe agradecer. Nunca alguém fez tanto por mim e eu nem mereço tanto. E preciso te pedir desculpas porque sei que minha sujeira te polui. Sei que com meu peso seu voo é mais baixo.
Eu sei do meu lugar, minhas origens humildes, sei do sacrifício que faz e das renúncias. Valorizo demais tudo isso e tento (Deus sabe quanto!) retribuir o tanto que me dá. Te quero cada vez mais porque te amo cada vez mais porque te admiro cada vez mais. O meu problema é que vejo que não ocorre o mesmo com você... percebo que você faz cada vez mais força pra manter uma distância entre nós que nunca será transposta, um espaço vazio proibido pra mim. Você não me quer fisicamente no seu mundo cotidiano. Nossos contatos físicos ocorrem em datas pré-definidas, por período breve e, quando acaba, frequentemente te vejo ir se lavar antes de partir. Houve um tempo em que trocávamos mais secreções e você não parecia ter medo de se infectar, mas hoje é diferente, os beijos quase não ocorrem mais. Me sinto fedendo quando estou contigo, sempre tão limpinho. Nunca tinha sentido nojo de mim mesma antes de te conhecer, agora sinto e sinto-me suja. Seu perfume potencializa meu fedor e se incomoda a mim, como pode que não incomode a você?
— Mas eu sempre te disse que adoro seu cheirinho... seu cheiro de Barata... é o melhor que já senti. Você sabe que prefiro as baratas e de todas você sempre foi a melhor! Quantas vezes tenho que dizer isso... você é surda?
— Não quero ouvir isso milhões de vezes, quero sentir uma vez só... sentir! Poupe suas palavras, basta me mostrar!
Se isso fosse verdade você viria morar comigo. Mas por mais que eu faça nunca consigo preencher os pré-requisitos necessários para recebê-lo junto a mim. Você diz que é possível que venha um dia, se eu me comportar bem, mas nunca entendi isso e quando acho que vai tudo correndo bem, estou sempre à centenas de quilômetros da chegada. Já tem 10 anos que tento, corro, corro e não me movo. Muitas vezes ainda retrocedo e é dessa forma que consigo ficar cada vez mais longe do meu maior desejo, que é você juntinho de mim. Mas hoje acordei e pensei: me vi como um atleta que sonha ser campeão e decide largar tudo em nome desse sonho e treinar incansavelmente... dez anos depois ele percebe que nunca conseguiu nenhuma medalhinha sequer e conclui: "eu não nasci pra isso, só pode ser! Nunca conseguirei. É melhor começar outra coisa antes que não haja mais tempo pra eu concluir algo". E eu pensei: Até quando vou tentar sem saber se conseguirei? Passarei o resto da vida tentando? Tenho disposição pra tanto fracasso? Por favor, perceba! É kafkiana a situação! Me sinto como se tentasse me inscrever para um concurso; chego lá com uma pilha de documentos e me dizem "você não tem o necessário, não pode se inscrever". Passam seis meses, quebro a cabeça tentando descobrir o que falta, o que tem de errado, mudo, tiro, acrescento novos documentos: "você não tem o suficiente" e repito isso por dez anos... e você quer que eu não me questione?!?! Que eu aceite resignada... e cada vez que eu pergunto o porquê, você diz que é justamente por isso! Me desculpe, mas não aguento mais essa esperança que é destruída frequentemente... essas tentativas em vão... trabalho e dedicação de anos que se esfacelam em um minuto, a cada noite: "duvido que ele não queira se casar comigo agora que tenho me comportado tão bem", "e como pode eu sofrendo aqui sem o corpinho dele junto ao meu e ele satisfeito lá, escarrapachado na cama sozinho", "ele nunca virá, me repetiu hoje pela milésima vez!". Você já me disse inúmeras vezes: "VOCÊ PREJUDICA MINHA PRODUTIVIDADE" e, ao invés de pensar em ter um escritório para passar o dia trabalhando e voltar para nossa casa à noite, comer minha comidinha e dormir comigo, NÃO! Parece que dormir comigo também prejudica alguma coisa em você. Na verdade, até a comida da sua casa é mais limpa que a minha: eu te entupiria de alimentos duvidosos, remédios, fezes, assuntos fúteis do dia-a-dia, de tentações carnais, de mosquitos e caramujos, desejando coisas indesejáveis, te obrigaria a dizer "não" tantas vezes, que você não aguentaria! Não é?
— Minha Baratinha! Você sabe que nada disse é verdade. Eu digo sempre que isso é coisa da sua cabeça! "faça a coisa certa e o prêmio virá" se não fizer, não conseguirá: é simples! Você é a coisa mais importante na minha vida, mas eu só preciso de paz pra viver! Só isso! É capaz de me dar paz? Nosso amor a distância é tão bom! Tão discreto e comedido, te amo ainda mais quando não estou contigo, tão puro é o meu amor por você! E você ainda reclama? Chegará um dia em que estaremos juntos (é possível) mesmo que seja em algum tipo de paraíso (um dia você já mereceu conhecer meu paraíso, pode conseguir de novo). Quem sabe, algum dia, mesmo que em outro universo, nós dois juntos formemos um paraíso, ao invés de um inferno? O mundo está cheio de mundanidade, eu não tenho tempo pra isso! Estou conectado à universalidade, ao eterno... pare de pensar no hoje e no amanhã (e de preferência esqueça-se do ontem de uma vez por todas!), você está pensando pequeno, renuncie a eles todos em nome da eternidade! Só então você largará essa filosofia barata, de fila de supermercado, e poderá voar comigo para todos os universos possíveis, juntinhos, enquanto dormimos... não é um barato?
— Querido... acho que se não consegui até hoje, não serei jamais capaz disso porque... alguém precisa ir ao supermercado e, mesmo as velhinhas enfrentam fila e eu não tenho a sua sorte de ter baratas trabalhando pra mim... minhas coisas são coisas baratas, não posso pagar por essa viagem de primeira classe...
...
...
— Bem, terminada a hora do cafezinho... voltemos ao trabalho! Pare de reclamar de sua sorte, não tenho mais tempo pra isso!
— Sim, senhor... desculpe.
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Conversa de baratos
RandomDuas criaturas bizarras com problemas de convivência discutem seu relacionamento.