A Criatura

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Eu entro na sala escura com calma.

"Tudo não passa de uma fantasia", penso enquanto passo pela porta destruída por cupins. "Fantasmas não existem, nunca existiram".

É uma casa velha, com sinais de que foi abandonada às pressas. Porta-retratos estão caídos no chão, cercados por vidro quebrado e empoeirado. Algumas janelas estão estilhaçadas, outras apenas imundas. As cortinas pendem de forma estranha, parecendo que vão cair a qualquer instante.

Vejo bonecas jogadas no sofá, um jornal abandonado sobre a mesa de centro, um tapete rasgado.

Ouço passos atrás de mim. Viro tentando seguir com os olhos a fonte do barulho. Não vejo nada.

Avanço mais para dentro da sala e me assusto quando um rato sai correndo de baixo do sofá.

"É só um rato". Eu respiro profundamente para me acalmar.

Eu consigo ver pela janela que está começando a escurecer. Talvez seja uma boa ideia eu sair da casa logo. Posso deixar para explorar quando tiver mais claro.

Enquanto me encaminho para a saída, as luzes se acendem. Não são luzes elétricas. São velas. Todas acesas. Ao mesmo tempo.

Meus pelos dos braços se arrepiam. Corro em direção à porta de entrada, mas não consigo abri-la. Está trancada. Não poderia estar trancada, porque eu passei por ela para entrar na casa. Não havia chave.

Forço a porta até ouvir um novo barulho às minhas costas. Mais uma vez eu viro rapidamente, mas não vejo nada.

Passo pela porta da sala e as velas ainda estão acesas. Resolvo não entrar novamente ali.

Decido procurar outra porta para sair. Talvez tenha uma outra saída na cozinha. Quando estou no corredor, me encaminhando para meu plano, escuto um rangido na escada.

Acreditando que vai ser mais um barulho sem fonte, olho para cima das escadas e vejo uma menina. Meu instinto foi correr na direção dela.

- O que você tá fazendo aí? – pergunto – Você não pode ficar aqui dentro. Foi você que trancou a por...

A última palavra ficou presa na minha garganta. A menina olhou diretamente para mim. Seus olhos eram brancos, sem vida. Reparo que a menina tem sangue nas mãos.

- Mas o quê... – mais uma vez não termino a frase. A menina aponta para algo às minhas costas.

Uma figura que não é completamente um homem, nem um animal, me encara estaticamente. A criatura é alta, muito pálida. Não tem cabelos nem usa roupas. Tem formas alongadas, uma cabeça arredondada e dedos compridos esticados na minha direção.

Eu grito e logo me arrependo de ter feito isso. O barulho parece despertar a criatura de sua condição inercial e ela começa a andar na minha direção.

Começo a correr para o topo da escada, mas a menininha desce na minha direção.

Entre enfrentar a garota ou a coisa, tento minhas chances com a menorzinha.

Ela não avança sobre mim, no entanto. Ao ver a criatura se aproximando, ela corre na mesma direção que eu. Ela também tem medo.

Não consigo mais tomar nenhuma decisão consciente. Apenas sigo meus instintos, que me mandam seguir a menina. Ela deve conhecer a casa, deve saber para onde fugir.

Ao alcançar o topo das escadas, ela começa a correr de maneira estranha, apoiando-se sobre seus pés e mãos.

Consigo escutar a criatura cada vez mais próxima de mim e quanto mais eu grito, mais perto ela fica.

A garotinha entra em um quarto que um dia já pertenceu a uma criança. Quando eu passo, ela fecha a porta. Encarando-me diretamente por seus olhos enevoados, ela coloca o indicador sobre os lábios, solicitando que eu me cale. Ela aponta para a porta e mais uma vez coloca o indicador sobre os lábios.

Entendo que ela quer que eu fique em silêncio e é exatamente o que eu faço.

Ainda estou parado perto da porta quando a criatura começa a empurrá-la do lado de fora. A menina corre para dentro do armário.

Começo a olhar em volta, procurando uma saída. Vejo nas paredes, alguns porta-retratos empoeirados. Chama-me atenção a menininha nas fotos. A mesma menininha que estava escondida no armário. A foto está em preto e branco. Parece tão velha quanto a casa, abandonada há mais de quarenta anos.

A porta começa a ceder às investidas da criatura. Eu não tenho onde me esconder.

Eu sinto muito medo. Meu corpo treme violentamente, meus dentes batem uns contra os outros. Corro para baixo da cama e tento ficar em silêncio. A porta é escancarada.

Escuto os passos da criatura. Ela abre o armário, que está vazio.

"Onde está a menina?", pergunto a mim mesmo em pensamento.

A criatura continua a andar pelo quarto e para repentinamente.

Temo até mesmo que o som da minha respiração seja alto demais. Paro de respirar.

Sinto um arrepio na nuca e viro a cabeça para o outro lado.

A menininha está lá, de joelhos. Suas mãos ensanguentadas apontam para baixo da cama, onde eu estou. A criatura volta a andar, agora em direção a cama.

Não consigo mais controlar meu corpo. Tremo tanto que as batidas do meu corpo no chão provocam vibrações sob mim. Sinto um líquido quente escorrer pelas minhas pernas.

Ao longe, escuto risadas. Eu choro. Não quero morrer.

Eu grito e imploro: - NÃO QUERO MORRER!

Escuto a voz da minha irmã me chamando.

- Lucas! Lucas! – seu tom é preocupado.

Consigo sentir mãos segurando meus braços.

- Lucas! Tira os óculos, tira os óculos! – ela continua falando.

As palavras dela começam a entrar na minha consciência.

Sinto mãos sobre minha cabeça e de repente tenho que adaptar meus olhos à claridade.

Estou novamente na sala da minha casa. Estou jogado no chão, molhado e chorando. Minha irmã me abraça com força, meus amigos riem sentados no sofá.

Aos poucos vou voltando à realidade. Lembro que estava brincando com meus óculos de realidade virtual. Na tela da TV, meus amigos viam ainda a imagem pausada da menina de joelhos ao lado da cama.

"Tudo não passou de uma fantasia", forço-me a pensar, para me acalmar. Começo a sentir vergonha por ter molhado as calças. Meus amigos nunca que iam esquecer dessa história.

- Bem que eu te avisei para não entrar nessa simulação de terror, Lucas. – minha irmã me ajuda a levantar do chão.

- Agora é minha vez! – ouço meu amigo dizendo, enquanto corre para colocar os fones de ouvido e os óculos. Vejo ele escolher um outro cenário de terror.

Não fico na sala, porque vou ao meu quarto trocar de roupas, mas mesmo no chuveiro consigo escutar os gritos e as risadas vindo do outro cômodo.



--xx--

Ei, você gostou desse conto? Acho que você também vai curtir muito meu outro conto "Desejos Secretos". Por que não vai lá dar uma conferida? Acho que você não vai se decepcionar.


"A Criatura" foi o conto vencedor da Copa dos Contos 2016, organizada pelos queridos WattpadContosLP


Uau! 8k leituras! Muito obrigada! Eu nem consigo acreditar ❤️

Muito obrigada por todos os comentários. Mesmo que a correria do dia-a-dia faça com que eu não responda a todos, eu os leio com muito amor e carinho. Obrigada pelas palavras.


Beijo a quem é de beijo e abraço a quem é de abraço.

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