Conto na íntegra

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Antes de tudo, gostaria de deixar claro que minhas esperanças são as mínimas imagináveis. O próprio ato de iniciar este registro já evidencia meu desespero e descrença na minha sobrevivência. Fui levado por um impulso juvenil - mesmo não sendo tão jovem - e agora encaro as consequências que tantos já tinham me alertado sobre. Estando de posse deste escrito, eu imagino que você também tenha sido vítima de alguma irresponsabilidade que o trouxe a este mundo medonho. Afirmo isto consciente de que todo o meu sofrimento foi culpa exclusivamente minha. Nessas últimas horas que passo em segurança, vou descrever tudo o que aconteceu e me levou a um fim tão deprimente, no lugar mais alto desse mundo chamado Taleriaan.

Tudo começou quando o professor Duncan - meu pai adotivo e mestre - chegou à porta de casa tomado de um nervosismo fora do comum, após passar longas semanas sumido em suas explorações. Era noite e ele bateu tão forte na porta que acordei pulando de susto. Quando ele entrou e explicou o motivo da histeria, por mais absurdo que fosse, eu não podia deixar de acreditar, pois o medo estava marcado permanentemente nos seus olhos, algo tão palpável que nunca uma situação ilusória seria capaz de fazer. Ele contou que avistou um grupo de quatro gigantes. Quando tentou descrever as criaturas, era tomado de uma repentina tremedeira e começava a delirar, reavivando as memórias. Segundo ele, os gigantes estavam brigando entre si. Um deles discordava do grupo quanto a algum assunto, mas a conversa não durou muito tempo. Assim, como era de se esperar de anomalias da natureza, eles transformaram a discussão numa briga violenta, onde o dissidente foi seriamente ferido de uma forma brutal e que denotava a total falta de compaixão do grupo agressor. Creio, pelo tom temeroso das palavras de meu pai, que uma carnificina ocorreria, caso o grupo vencedor terminasse derrotado; afinal o que mais se espera de quem - ainda mais um gigante - entra numa briga brutal? Mesmo um animal selvagem, quando confrontado por um semelhante superior, se rende à pacatez e prefere se render à vontade do mais forte.

Até hoje guardo uma ponta de curiosidade, querendo saber os detalhes da briga, e não me orgulho disso. Foi esta maldita curiosidade que traçou o meu fim. Meu pai não conseguia descrever com clareza a luta, tamanha truculência, e apenas pontuava vagamente o sofrimento da sua mente após ter presenciado a cena. Após surrar o companheiro, os três gigantes restantes o carregaram em direção ao leste, e uma das vozes aterradoras disse algo como "carregar ele por toda a montanha". Foi daí que tirei a minha ideia absurda.

O professor Duncan cavalgou ininterruptamente até chegar a nossa casa, e ali ele estava, no limite da dor e sanidade, sob meus cuidados precários. Durante a madrugada eu já estava completamente convencido da veracidade da história e minha maior preocupação era tranquilizar meu pobre pai. Dei um chá para acalmá-lo e finalmente ele dormiu. Infelizmente, o sono trouxe um descanso permanente. Provavelmente a mente dele já não tinha estrutura para voltar ao mundo que agora julgava ser frio e cruel, e o corpo se entregou voluntariamente ao descanso eterno. No dia seguinte, fui ridicularizado por todos da vila, que não acreditaram na história. Acusaram-me de ter devaneios infantis, e que meu pai havia surtado. A raiva que tive ao ser desacreditado me dominou por longas semanas, principalmente pelo fato de que bastava uma olhada no estado do professor para saber que tamanha mudança de comportamento não podia ser obra de fantasia. E ainda mais o professor, que era tão centrado em seus estudos, dono de uma mente sadia até o dia em que partiu em sua última viagem.

Após dias de lamentação pela morte súbita do professor, e pelo descrédito demonstrado por todos, decidi que precisava provar a existência dos gigantes, uma vez que eu mesmo já tinha total convicção dela. Passei sete dias organizando a viagem e parti sem olhar para trás, ciente de que para suceder em minha empreitada, só havia um lugar aonde eu poderia ir: além das montanhas.

Taxado de louco, encarei o desafio de transpor as montanhas do leste. Nunca houve registro de quem tivesse voltado de uma viagem até o outro lado. Ora, acho que não há registro sequer de quem tenha tentado antes de mim. A travessia foi aterradora, passei

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⏰ Última atualização: Aug 16, 2016 ⏰

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