E a cobra fumou...

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   Era de manhã, mas o céu pesado e frio tornava a hora indistinta. Levantei, calado, e percorri as barracas, despertando os homens do meu pelotão para a marcha. O que nos aguardava lá fora, ninguém sabia ao certo. Tudo o que conhecíamos vinha do que tínhamos aprendido em campos de treinamento no Brasil, sob sol e suor. Agora, estávamos a um oceano de distância, e aquilo parecia um sonho distante – ou um pesadelo próximo demais. Nosso treinamento era um esboço pálido da realidade que nos esperava na linha de frente. Fomos adestrados, não preparados; doutrinados com armamentos e táticas francesas, inspirados por uma guerra que não era a nossa. Mas aquele chão, coberto de lama e sangue, era nosso agora.

   A marcha daquela manhã carregava um peso diferente. Já não era como nossa primeira caminhada em solo italiano, com nossos uniformes finos e tropicais, ridículos e desprotegidos contra o frio cortante. Naquele primeiro dia, parecemos quase caricaturas, com fardas que lembravam as dos soldados do Eixo – um erro grotesco. Aprendemos rápido, negociando cigarros e latas de comida para conseguir trapos mais quentes, mais parecidos com os uniformes americanos. Mal sabíamos que aqueles retalhos eram temporários; receberíamos, enfim, as vestes adequadas. Hoje, nossa farda era mais grossa, mais pesada – como nós mesmos. Agora, tínhamos as armas e técnicas certas, mas experiência... essa viria apenas com a guerra. E a guerra estava logo adiante.

   Após quase cinco quilômetros de marcha em silêncio, chegamos ao posto de comando. De lá, seguiríamos em um caminhão até o declive do monte, cada um de nós envolto em seus próprios pensamentos sombrios. O ar carregado de pólvora e lama pesava sobre nós, misturado ao som abafado de explosões e disparos. Enquanto aguardávamos, vi um de meus homens apertando o terço entre os dedos; alguns faziam o sinal da cruz, outros olhavam para o nada, olhos fixos e perdidos. Eu me incluía entre esses. Com cada quilômetro, o estrondo da artilharia se tornava mais claro, mais visceral, até que chegou a engolir o próprio som de nossos passos.

   O caminhão parou. Nem sequer havíamos descido completamente quando o soldado Agripino foi atingido – um balaço certeiro na cabeça. Não houve grito, apenas o som seco do corpo que caiu. A metralhadora alemã cuspia fogo implacavelmente, ceifando vidas em segundos. Nos primeiros 50 metros, o inferno se desdobrou diante de nós. Colegas tombavam em um piscar de olhos, outros gritavam por socorro, chamavam pela mãe, choravam como crianças perdidas. Era um massacre. Explosão após explosão nos cercava, cada uma mais perto, cada uma mais intensa. Seguíamos, obstinados, atirando e nos protegendo como podíamos – em árvores, pedras, contra tudo que nos oferecesse alguma sombra de abrigo. Chegamos ao primeiro bunker, mas logo soubemos que era ali que ficaríamos. A linha de frente não avançaria mais.

   O dia avançou, mas os tiros e o som dos projéteis eram incessantes. Horas intermináveis se arrastaram até que vi o capitão no rádio, exausto, sujo, o rosto marcado pela lama e pelo desespero. A notícia foi um golpe amargo: o flanco, que devia ser protegido pela "task force" americana, havia falhado. Tínhamos que recuar.

   Voltamos, carregando não apenas nossos corpos, mas o peso daquela derrota e o terror que ali, naquele pedaço de Itália, aprendemos a conhecer. Onze horas de inferno sobre a terra, onze horas do nosso batismo de fogo. Este foi o dia em que a cobra fumou – e nós, os poucos que restaram, nunca esqueceríamos.

No Cume da MontanhaOnde histórias criam vida. Descubra agora