Hoje é sábado. Ao menos, é o que ouvi os enfermeiros murmurarem no corredor. Aqui o tempo parece não passar, tudo parece estagnado. Há quatro meses, vivo aqui. Estou numa construção retangular de teto relativamente baixo, toda de concreto e pintada de branco. O branco mais estranho que já vi; olhar para estas paredes causa um vazio e uma inquietação perturbadora. O local ao todo tem uns 15 metros de largura e uns 20 de cumprimento. Um corredor divide o local ao meio, e há outro menor que leva a uma escadaria no fim do corredor.
Há oito quartos minúsculos ao longo do corredor, quatro de cada lado. Todos de tamanhos semelhantes, mobiliados igualmente com uma cama hospitalar de ferro, uma cadeira de madeira nada confortável e uma mesa de cabeceira. Há apenas um banheiro para todos, e ele fica depois do ultimo quarto, próximo a escadaria. Na extremidade oposta, está o refeitório. No banheiro, há uma banheira,uma pia e um chuveiro, todos de aço. Há também dois vasos sanitários e três ganchos plásticos na parede. Não há espelhos, armários ou acessórios típicos de banheiro. Há quatro meses, não vejo meu próprio rosto.
No refeitório, há uma mesa retangular com oito cadeiras, tudo de madeira. Aqui nós não cozinhamos, os alimentos sempre são entregues em marmitas de alumínio. No canto do cômodo há uma geladeira velha e um pequeno armário embutido. Nele estão oito pratos, oito copos e oito pares de talheres. Tudo contado. Quem se atrever a sair do refeitório levando algo de lá, é punido com uma "visita" a solitária. Isso mais parece uma cadeia. Não recebemos visitas, além dos enfermeiros. Aqui não há janelas, e as portas dos quartos, trancam por fora. Não há interruptores, a luz está constantemente acesa. Assim, nunca sabemos que dia é, ou se esta claro ou escuro lá fora. Faz parte da tortura psicológica.
George (o enfermeiro) , costuma me visitar duas vezes ao dia. Seu cabelo é castanho e liso, na altura dos ombros, um corte que fazia com que ele parecesse meio hipster . Ele sempre chega após o almoço, limpando os óculos de lente grossa pelos corredores. Sempre tento puxar assunto, mas ele parece ter sido orientado para não me responder. Ele me traz doses de apomorfina. A apomorfina atua sobre o cerebelo para regularizar o metabolismo e normalizar a circulação sanguínea, de tal forma que o sistema enzimático do vício é destruído em alguns dias de tratamento. No meu caso, meses. Lembro-me das primeiras vinte e quatro horas que passei aqui. Fiquei completamente louca e paranóica, como muitos viciados em uma abstinência forçada. Após o início do tratamento com apomorfina ( ironicamente sugerido por mim a direção do sanatório) , as vozes pararam de falar, e as crises diminuíram.
Hoje é sábado, hoje George não veio. Em seu lugar, veio um dos seguranças. Mas ele não trouxe as doses de apomorfina, trouxe as chaves da minha porta e algemas.
- Vista-se e me acompanhe. Seu dia de sorte branquela. - disse ele enquanto abria a porta.
Dia de sorte? Aquilo só poderia significar uma coisa. A última vez que sai daquele bloco, foi na primeira semana de internamento. Quando Jordan viera me visitar, quando ele ainda se importava. Algemada, acompanhei o segurança até o fim do corredor, e então descemos as escadas. Os degraus pareciam intermináveis. Ao chegar ao térreo, me deparei com uma multidão de funcionários apressados e mal humorados. Pela janela, entravam os raios de sol, pude sentir o calor acariciar minha pele. Eles estavam acostumados, não davam valores as pequenas coisas.
Fui conduzida a uma espécie de sala de espera. Esperei ali por cerca de vinte minutos (ao menos, era o que o relógio no canto da parede mostrava), e, após este pequeno tempo fui chamada pelo nome. Na outra sala, havia um senhor com um semblante cansado; sua gravata estava suja de molho barbecue. Ah sim... eu poderia reconhecer aquela cor de longe. Pude sentir minha boca salivar ao me recordar do sabor do sanduíche de churrasco com molho barbecue, era o meu favorito.
Ele colocou os óculos e fez sinal para que eu me sentasse. Neste momento minhas algemas foram retiradas.
- Senhorita Guinevere, vamos ser rápidos. A instituição esta passando por um corte nos gastos...então optamos por liberar provisoriamente os pacientes que apresentaram melhoras significativas nesses últimos meses. Digo provisória, pois estamos de olho em você. E no menor deslize, a traremos de volta, mas de forma definitiva. Pessoas como você não deviam estar nas ruas. - disse enquanto me entregava uma mochila.
Naquela mochila,estava tudo que eu trazia comigo, no dia que fui internada. E, por incrível que pareça, as coisas estavam intactas.
- Senhor Healy, pode ter certeza que minha saída será definitiva. Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Com certeza, pra sua tristeza não voltaremos a nos ver. - respondi conferindo as coisas dentro da mochila.
Ele concordou com um aceno de cabeça desinteressado, e após assinarmos diversas guias jurídicas, fui liberta. Mal podia acreditar. Eu não andava, meus pés flutuavam pela calçada. Meus pulmões arderam ao se encher de ar novamente. Que falta senti do cheiro poluído do trânsito, das vozes das pessoas apressadas nas calçadas estreitas. Todos me encaravam, eu vestia uma camisola hospitalar ridícula, mas não ligava. Agora teria minha vida de volta, sim, eu teria. Após me vingar de todos os que me traíram. Um por um.
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LOLA
Mystery / ThrillerLoucura. Para alguns, uma qualidade louvável. Para outros, o pior dos defeitos. Para ela, algo que faz parte do seu ser. A essência, a natureza. E fugir de si é um pecado. Aceitar-se é uma vantagem para ela, mas para os outros...