Outubro de 1997. Primavera no Vale do Gelo.
Rudi estranhava o alvoroço dos grandes pássaros pretos que, agitados, batiam as asas desconjuntas enquanto disputavam galhos e entoavam sons assemelhados a gritos. Por serem aves de aparições raras, não conseguia compreender o significado de estarem ali, naquele amanhecer.
Seu filho Sáli parecia não partilhar da mesma preocupação. Enquanto caminhavam no habitual passeio matinal, Rudi olhava atento a tudo. Para Sáli, a brincadeira já havia começado. Para Rudi, um reconhecimento de terreno. Por instinto, levou algumas vezes a mão ao pescoço em busca do Chamado dos Lobos, que não estava pendurado nele. Antes de saírem, procurou por todos os cantos e nada. Perguntou a Sáli se o vira, na esperança de estar de posse do filho, mesmo sabendo que ele não mexia no que não lhe era permitido. Em vão. Talvez, por causa disso, sentia-se mais introspectivo do que de costume.
Enquanto cruzavam o Vale do Gelo, escutaram pedidos de socorro que vinham do Morro Alto. Uivos, gritos e choros, que fizeram até mesmo os pássaros se aquietarem.
- O que é isso, pai? - perguntou Sáli, assustado.
Rudi apertou a mão dele, cerrou os olhos na direção do som e disse:
- Não sei, filho.
De novo, mais uivos e choros.
Rudi, com os sentidos aguçados, olhou ao seu redor, certificando-se de que somente eles estavam ali. Não vendo ninguém, abaixou-se para Sáli e disse-lhe encarando-o:
- Não dá para voltarmos para casa agora, mas é perigoso levar você comigo. Você sabe o que fazer quando saio em missão, não é?
Sáli respondeu que sim com a cabeça, tristemente.
- Vou ajudá-lo a subir em uma árvore. Não quero que desça enquanto eu não vier lhe buscar - completou o pai em tom de ordem, procurando a árvore ideal. Encontrou uma enorme sequoia e fez com que o filho, pequeno e bastante ágil para seus sete anos de idade, subisse e se escondesse no meio dos galhos folhados. - Agora eu preciso que você fique aí em cima, em silêncio, Sáli. Você promete isso para mim?
Porém, antes da resposta de Sáli, ouviram mais uivos e choros. O líder dos lobos levantou a cabeça na direção do som e farejou o ar. Suas pupilas dilataram. O cheiro de sangue não deixava dúvidas de que alguém precisava de ajuda. Afastou-se pesarosamente do filho.
- Paaai! - gritou Sáli de onde estava, fazendo-o parar e olhar para trás. - Vou te esperar aqui! Eu te amo!
Rudi sorriu em silêncio e disparou rumo ao Morro Alto. À medida que corria em direção ao som, a essência do lobo tomava conta dele. Não de um lobo qualquer, mas do maior Lobo Negro que já existiu, guerreiro e rei de todas as alcateias do Vale. Sua força e lealdade aos seus alimentavam a crença de que era o último guardião dos imortais.
Avistou três de sua espécie feridos no chão. Um deles, com a pata quebrada, uivava desesperadamente, tentando se levantar. Entretanto, ao invés de aumentar o passo, Rudi reduziu a velocidade. Sua intuição lhe chamava à razão e pedia que observasse comedidamente aquela cena. Aproximou-se devagar e reconheceu a loba Tanja, que uivava e chorava na mesma medida, expressando pavor no olhar.
Eram os seus e precisava ajudá-los. Olhou mais uma vez ao redor para ver se via outros lobos ali, aos quais pudesse pedir ajuda, mas não havia sinais deles. Teria de agir sozinho, já que não trazia consigo o Chamado dos Lobos.
Movido de compaixão pela loba, a qual esforçava para se levantar, contrariou a voz interna que lhe intimidava e correu para junto dela. À medida que se aproximava, percebeu outros dois deitados, banhados em sangue. Estavam dilacerados ao lado de Tanja, a qual mostrava-se em estado de choque.
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A Caçada de Goya
Romance"A menina. O símbio. O leão negro. E o mais fantástico dos sonhos." Inspirado na história dos Imortais do Himalaia, este romance envolvente narra a história de Gaia, uma menina que vive no Brasil com sua mãe, até o momento em que vê sua vida se tran...