O despertador toca. Acordar cedo numa sexta-feira devia ser considerado um crime, não que não seja um crime para Sofia, porque é. E é por esse motivo que ela ainda está na cama, deitada, não dormindo nem com sono, só deitada, enquanto observa as sombras se formando na parede. Ela gosta disso, de sentir como se nada mais importasse e não importava mesmo, não para ela. Havia uma viagem hoje, ela deveria estar disposta, deveria estar arrumando as malas.
A única pessoa que está acordada na casa é Corey, claro. Sofia tem a leve impressão de que ele não dorme nunca porque a) sempre que ela acorda no meio da noite, ele está lá, b) muito antes dela acordar, ele já está de pé e c) Corey parece um zoombie por causa das olheiras acentuadas abaixo dos olhos (elas as vezes chegam a ficar azuis). Sofia ri pensando nisso.
4:30 e aí vem ele abrindo as janelas como se não houvesse amanhã ou como se houvesse? Não importa. Ele acaba com toda a adorável escuridão do quarto dela. "Como alguém consegue estampar um sorriso no rosto às 4:30??
- Sofia, acorde - diz ele sem jeito - sua viagem de formatura é hoje - ignorandl o fato de ser apenas uma formatura de ensino médio - e você tem que estar radiante! - ele fala com uma alegria que realmente a irrita.
- Claro, porque é super natural uma menina de 17 acordar às 4hr da matina para se organizar pra uma viagem que começa às 9hr! - diz ela com um tom sarcástico, Corey ignora - Mas qual a necessidade de abrir as cortinas desse jeito? Tá loco?
- Quer saber? Seu pai iria gostar de te ver mais animada.
- Falando no pai, como ele era? - silêncio descomunal - Tipo, como ele reagia quando você o acordava assim?
- Se eu começar a responder suas perguntas, você não para nunca - ele segura a mão dela - mas, se te consola, ele sempre acordava antes de mim.
- Não entendo como alguém sem a sanidade comprometida pode acordar antes de você, quer dizer, isso é mesmo possível? - ela devolve se levantando e beijando a testa do velho amigo.
Enquanto Corey arruma sua cama, ela vai ao banheiro pegar creme dental e corre para sujar a testa dele que se vira quatro segundos antes dela chegar. Com um ar de superior:
- Você é tão previsivel - e ri.
Sofia se arruma no banheiro e quando sai, Rey já havia deixado tudo arrumado. Ri achando irritante essa capacidade dele de fazer com que tudo seja deliciosamente chato.
Ele cuida de Sofia desde que seu pai morreu, ela sempre o amou como um pai e vice-versa. E como não amar? Ele ensinou tudo a ela, acompanhou seu crescimento, ensinou a praticar todos os esportes, perigosos ou não, deu colo quando precisava. As vezes se esquecia de que ele não tinha nenhum laço de sangue com ela, e se perguntava por que ele ainda continuava lá, já que não era obrigado por nenhuma lei a cuidar dela.
Enfim, Sofia tenta se decidir, enquanto penteia os cabelos, se primeiro arruma a mala ou toma café, dolorosamente a ideia de que nenhuma das atividades poderia ser dispensada. Veste uma camiseta preta sem detalhes, e uma short jeans branco. Observa que o tempo está no mínimo agradável lá fora. Temperaturas não muito altas nem muito baixas, apenas agradável como dificilmente é o clima na sua cidade natal Cascavel, Paraná.
Por fim, decide comer, percebendo que não vai conseguir realizar nenhuma atividade sem antes comer uma grande e cheia tigela de cereal.
Ela desce e, Samantha está assistindo televisão e anotando algo num papel, Sofia corre e pula em cima do sofá, assustando-a que grita. Samantha foi contratada por Corey há 5 anos, foi quando Sofia menstruou pela primeira vez, ele não sabia lidar com isso, tadinho.
Ela come, Samantha a ajuda a escolher algumas roupas explicando quais seduzem e quais nem chamam atenção inconformada com Sofia que opta pelas mais simples e menos chamativas. Ela não liga muito para roupas ainda mais quando se trata de escola ou eventos como este, já que não tem muitos amigos. 8:13, menos de uma hora para a viagem, ela troca o short por uma calça com tachinhas nos bolsos e e veste o moletom-azul-inseparável. Se despede de Rey e Sam no portão da escola.
...
Já no ônibus, Sofia observa pais deixando os filhos, adolescentes colocando fones de ouvido ou abrindo livros, o motorista pedindo para que todos subam... Ela opta por um livro que está guardado na mochila há tempos, "Quem é você, Alasca?" do John Green, já o lera milhares de vezes, mas nunca se cansava.
Depois que todos entram, se acomodam e acenam para os pais, os adolescentes que estavam ouvindo música ou lendo, deixam tudo de lado para tirarem fotos DENTRO DO ÔNIBUS. "Qual o problema deles?". Eu também não os entendo Sofia.
Ela pega o travesseiro pequeno com formato de cookie para apoiar a cabeça, coloca os fones na tentativa de dormir um pouco, já que dorme mais durante o dia.
No ônibus, Sofia consegue dormir por 2 ou 3 horas seguidas. Quando acorda tenta dormir de novo, mas sua tentativa falha. Então ela decide olhar a programação da escola, coisa que ela demora para achar. De todas as atividades ali propostas a que mais ficou curiosa para conhecer foi a visita às piscinas naturais, Rey havia dito dias antes que as pessoas não afundavam nas águas daquelas piscinas.
São três dias de viagem, cortando o Brasil no meio.
Já no fim do segundo dia, ela decide ligar para Rey, dizer como foi até ali, os lugares pelos quais ela passou.
Nada demais acontece, além de uma foto tirada dela enquanto dormia em prol da zoação, o que faz ela atirar o celular de alguém pela janela.
Quando finalmente chegam ao hotel, a primeira coisa que todos fizeram após se alojarem totalmente foi se jogar na piscina enquanto Sofia fingiu dor de cabeça só pra ficar um pouco no quarto. Ela não era do tipo solitária nem coisa do tipo, só estava tentando se agregar ao lugar.
...
No outro dia, pela manhã, visitaram a Cachoreira do Formiga. Ela achou engraçado o nome pela discordância dos gêneros, o que a Sra. Savanna (coordenadora escolar) explicou logo depois:
-Se chama Cachoeir... SILÊNCIO TODOS, POR FAVOR!!! - ninguém obedecia, então ela continuou falando baixo só para manter o ritual - Se chama assim porque o dono inicial se chamava...
Sofia ignorou o restante, vestiu seu biquíni e pulou na cachoeira, afinal, a água estava mais chamativa. O dia seguia, visitaram a Cachoreira da Velha e por último as piscinas naturais que tanto falava Corey. Foi a atividade mais legal dia, ela gostou muito, realmente não afundava e a areia parecia açucar.
O Sol se pós há 2 horas, Sofia jantou com todos no restaurante do hotel, escovou os dentes, fez uma trança nos cabelos e se deitou, até conseguiu dormir, mas acordou logo em seguida, não estava cansada o bastante para dormir até a manhã.
Olhou o relógio. "2:28, o horário perfeito para conhecer o lugar". Resolveu sair lá fora, calçou as sandálias azuis e, antes de sair pegou o-livro-de-sempre e um copo d'água.
Deitou-se a grama ao lado da piscina e observou as estrelas, pensou em como somos fragéis em relação às estrelas e a tudo que nos rodeia, no quanto a noite é fantástica e imprevisível. Ela percebe que alguém entra na piscina e, em defesa, esconde a cabeça no livro, pensando em como sair dali sem ser notada.
A água molha seus pés, assustando-a. E jogam água de novo, ela não olha, mas não está interessada em quem quer que seja. Um menino senta a seu lado. Ela olha de relance.
- Oi. - o garoto a cumprimenta.
- Oi. - ela responde.
- O que tá lendo?
Ela levanta a capa do livro para que ele possa ler o título.
- Interessante. - ele responde rindo - Me chamo Joe. Joe Cavendish. - fala rindo estendendo a mão.
- Legal.
- Você não vai me dizer seu nome?
- O que eu ganho com isso?
- O que você quiser - silêncio - Olha, se você continuar me ignorando eu te jogo na piscina com livro e tudo.
- Você não faria isso - ela mantém os olhos no livro.
Em instantes, ela está com a barriga no ombro direito de Joe como se fosse uma boneca, gritando e batendo nas costas dele:
- ME PÔE NO CHÃO!!! AGORA!!! EU NEM TE CONHEÇO!!!
- Xiu, assim você vai acordar os hóspedes - ele rebate calmamente. Em seguida, pula na piscina com Sofia no colo.
...
Ela olha para Joe que observa cada movimento dela, ela observa as caracteristicas físicas: Cabelo preto, meio magro, olhos... olhos castanhos talvez. Olhos que queriam dizer algo, olhos nos quais ela se perderia facilmente e sem culpa.
- Agora vai me ouvir? - ele quebra o silêncio rindo, com o sorriso vem uma covinha na bochecha esquerda - ruivinha chata.
- Ruivinha chata? Perdeu a noção do perigo? - ela fala colocando parte do livro, que sobrou enquanto ela se debatia, na grama, de costas para ele.
- Talvez, mas ate agora não cometi crime algum - ele se aproxima.
- Claro, porque se tivesde feito algo eu... eu... - ela se vira, assustando-se por ele estar tão perto.
- Você o quê? - ele diz chegando mais perto - Você vai me punir?
- Com um castigo mortal - ela olha nos olhos dele, "pretos, olhos pretos"sussurra, se afastando de costas.
Ele continua a olhá-la. Sofia apoia as costas na parede da piscina. Eles se aproxima colocando as mãos nas costas dela, seus corpos colados como imãs. Seu rosto chega tão perto do dela que ela consegue sentir sua respiração.
- Seus olhos...
- Meus olhos o quê?
- Eles me chamam... - ele fala tão baixo que quase não ouvia - Eles sussurram meu nome de tal forma que não consigo parar de olhá-los.
- Bom, eu não lembro d...
- Shh... - ele a interrompe com os dedos nos seus lábios.
Seu toque, tão quente e tão aconchegante fazia ela querer ficar ali pra sempre, parecia que cada segundo de duas vidas caminhou para isso. Ele aproxima seu rosto e suas mãos sobem à nuca de Sofia.
- Acho que estou prestes a cometer um crime - ele sussurra e a beija.
Sofia nunca havia sentido ou imaginado lábios tão quentes pressionados contra os seus ou mãos tão fortes a ponto de prendê-la assim. Foi o tipo de beijo que era inútil compará-lo com qualquer outro beijo que já trocara com qualquer pessoa. Mas antes dela conseguir aproveitá-lo, ele se desprende, a deixando confusa.
- Desculpe - ele diz com culpa nos olhos, afastando-se.
- Eu ainda tenho que te dar uma punição - mas já era tarde.
Ele sai da piscina e entra no corredor dos quartos, deixando Sofia sozinha e, principalmente, confusa.
Ela não sabia se ficava com raiva ou simplesmente ignorava. Claro que a segunda opção foi descartada, ela não poderia ignorar aquilo, não poderia ignorar uma conexão como aquela. Aquele beijo repentino, que começou suave e de uma hora pra outra se tornou tão intenso quanto aquela luz que passa pela fresta da cortina pela manhã todos os dias quando Rey a acorda.
Ela decide voltar para o quarto tomar um banho e, se os deuses permitissem, dormir. Faz esforços para esquecer aquilo tudo aquilo, pensa em procurá-lo, sua cabeça parece um rabisco barroco. Descarta a ideia de procurá-lo percebendo que talvez ele estaria ali pela manhã e eles acertariam tudo.
Deitada ela pensa em alguma maneira de dormir, ate que, de uma hora pra outra - como seu beijo - ela simplesmente dorme.
...
O celular vibra em sua barriga, ela olha o horário (4:00), o identificador indica que Corey estava do outro lado da lonha, ela atende ainda em transe por conta do sono:
- O que deu em você p...
-Sofia? - Samantha a interrompe com uma voz pensativa.
- Sim, por que? - Sam chora do outro lado da linha - O que aconteceu? Samantha?
- Você precisa voltar pra cá rápido, Sofia! (Pausa curta) O Corey, ele...
- Ele o que Samantha? Fala logo! - ela pergunta já com lágrimas no olhos.
- Ele morreu. Eu tô aqui no hospital.
Sofia, em choque, não espeta ouvir o resto, não consegue, é como se estivesse em stand by. Não queria acreditar que Rey estivesse morto. Ele. Corey. Que a cuidou como um pai.
- Sofia?
- Eu já tô voltando pra casa. Vou pegar um ônibus e...
- Não, eu já mandei te buscarem de helicóptero e te encaminharem para um aeroporto.
- Ok, tudo bem.
Ambas desligam.
Sofia arruma as malas o mais rápido possível. A foto de Rey já está sendo amassada em suas mãos enquanto ela a aperta liberando toda a sua dor. Leva as chaves correndo para a recepção e nem se lembra de avisar a algum professor. Lá fora, o helicóptero já a esperava. Não consegue se controlar, as lágrimas caem como cachoeira, como uma torneira esquecida aberta, e cada segundl parece mais devagar.
Ela chega em casa. Larga suas coisas na varanda, na sala já acontece o velório e quando ela se depara com o caixão, o abraça com toda a sua força, Samatha a entrega um lenço, como se um lenço controlasse toda a sitiação.
E agora, o que faria sem Corey para a ajudar? Como iria continuar sozinha?
- Foi ataque cardíaco - explica Sam.
...
Sofia acorda no sofá da sala. Já havia ligado e os agentes funerários chegariam em meia hora, mas ela não se arruma, continua deitada no sofá, lembrando de como era carinhosamente irritante ser acordada às 4:30hr, dos conselhos que lhe foram ofertados de forma tão branda e racional, de tudo. Olha uma última vez para Rey agora pálido num caixão, sem vida. Era doloroso demais, corrosivo demais para ela pensar nele agora como um morto.
Os agentes chegam e levam o corpo de Rey, por vontade dele, vai ajudar outras pessoas pela doação de orgãos. Sofia observa o carro dos agentes indo embora e pacificamente vai para o quarto. Lá ela deita na cama e, chorando, cochila.
Quando acorda, olha o relógio, 23:45, resolve, depois de muito tempo na cama, que é melhor tomar banho. Veste um vestido preto com mangas e desce para comer algo. Na cozinha, ela acha um bilhete escrito por Sam falando que não ia poder ficar essa noite. Sofia faz um sanduíche que logo devora.
Pasando pela sala, sente culpa por ter deixado Rey. E em seu rosto, já inchado e vermelho por causa do choro, brota mais uma lágrima, respectivamente muitas outras encharcam seu rosto com voracidade.
No banheiro, enquanto tenta enxugar as lágrimas, encontra em baixo da toalha de rosto que estava no armário, um pedaço de papel todo enrugado e velho. Desdobra o papel e, para a surpresa de todos estava parcialmente em branco, continha apenas a assinatura de Rey.
Leva o pedaço de papel para o quarto e, pensando em Rey, adormece.
...
Sofia demora a acordar, pensando no que fazer daqui para frente. Sabia que um dia isso iria acontecer, afinal, todos morreremos um dia, mas não sabia que seria tão doloroso. Resolve tomar banho, o banheiro está quase virando sua segunda casa.
Quando sai do box se olha no espelho, com uma observação mais em seus olhos. Vermelhos e inchados. Seu aspecto físico não é mais relevante. Ela olha de novo para a carta de Corey, que de repente parece queimar em suas mãos, queima a ponto dela precisar soltar a carta, como uma panela que acabou de sair do fogo.
A carta voa até o espelho e gruda lá. Sofia esfrega os olhos não acreditando estar vendo aquilo, mas seus olhos acompanham cada movimento. Na carta aparecem números que pegam fogo: "19-21-2-1 5 4-5-19-3-1 16-5-12-15-19 4-5-4-15-19 4-1-19 13-1-15-19"
Ela, ainda meio assustada, anota rápido todos os números no celular. A carta cai na pia, mas Sofia a pega antes que molhe.
Ela volta para o quarto e deita na cama, tentando decifrar a carta. O que era aquilo? O que Corey pretendia com isso? E principalmente, como ele ou qualquer outra pessoa conseguiria fazer aquilo?
Não é nada normal um papel parecer pegar fogo, a ponto de queimar sua mão, mas continuar intacto e depois, grudar no espelho como se estivesse molhado.
Ainda de toalha, ela senta na cama com o celular nas mãos. Observa uma, duas, três vezes.
Ela escreve os 27 números em bloquinhos de papel amarelo se veste e vai para a mesa do quarto. Coloca todos os números de cabeça para baixo, amassa e refaz 3 números, embaralha e ordena, mas não faz sentido, ela não consegue entender.
Por que ele havia deixado para ela uma sequência de números sem sentido? Zoação?
Sofia tenta de novo, por curiosidade, por Rey. Substitui todos os números por letras, seguindo a ordem alfabética.
A carta ficou assim: "19S-21U-2B-1A 5E 4D-19S-3C-1A 16P-5E-12L-15O-19S 4D-5E-4D-15O-19S 4D-1A-19S 13M-1A-15O-19S"
"Suba e desça pelos dedos das mãos" ela anota, mas não entende. Como pode ela subir e descer pelos dedos das mãos?
Samantha a chama na cozinha, ela vai. Pensando melhor, parece tão óbvio agora.
Sofia olha para os dedos pensando na metáfora de Rey. Enquanto desce as escadas recolve que a parte de subir e descer talvez tenha a ver com as escadas. Olha para os dedos novamente.
Com um sorriso no rosto, sobe e desce as escadas cinco vezes. Mas nada acontece.
Ela repete.
Então depois de um tempo de estátua no meio da escada, ela desce a escada inteira. Sobe 10 degraus e desce 10 degraus.
Os degraus da escada se movem formando uma passarela plana que abre uma passagem que parece um túnel que a leva para o subsolo da casa. Sam chama pela décima vez e Sofia entra rápido antes que ela veja. E a entrada se fecha.
O túnel é escuro, o que faz ela ligar a lanterna do seu celular, na luz não muito forte ela vê pituras nas paredes, círculos, triângulos, parecem símbolos.
Depois de andar mais um pouco, se depara com uma porta. A porta revela um scanner de luz azul que passa pelo corpo inteiro de Sofia, uma luz verde aparece e enfim, a porta se abre.